PAIVA, V.L.M.O. Samba no pé e inglês na ponta da língua. Revista OuvirouVer. N.1, Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, Departamento de Música e Artes Cênicas.p.47-65, 2005.
SAMBA NO PÉ E INGLÊS NA PONTA DA LÍNGUA [1]
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG)
A
presença de signos em língua inglesa na música popular brasileira começa a ser
observada na década de 20. No teatro de revista temos o registro de duas peças
com nomes em inglês: Jazz-band em
1923 e Off side em 1924. Em 1927,
Araci Cortes estréia duas revistas, Champagne
e Oooó, onde apresenta uma postura
americanista cantando o curioso samba Black-bottom, futurando uma mistura de
ritmos e de concepções que, então, parecia impossível viesse a acontecer... (Ruiz,
1984:89). Em 1929, Araci lança, na revista Compra
um bonde, a música Sapateando,
conhecida também como Fox-trot, de
Ari Barroso e Luiz Iglésias. A canção era uma apologia exagerada do ritmo americano.
Essa postura americanista é mais tarde renegada por Ari Barroso, em entrevista
ao Correio da Manhã, em 26 de janeiro de 1930, como registra EFEGÊ
(1978:162). Dizia Ari:
Quando
o jazz começou a invasão pela nossa terra eu fui a primeira vítima.Apeguei-me
em cheio tal joça e acabei pianista-jazz!...”Depois concluiu numa confissão
dolorida: "E foi como pianista-jazz que cheguei ao lugar que me pôs a
bondade extrema, a benevolência indescritível do povo carioca.
Segundo
Ruiz (1984:128),
A presença da música americana após a inauguração, entre nós, da época do cinema falado pode ser assinalada praticamente em todas as revistas teatrais do tempo, quase que como exigência de atualização, como convinha ao gênero. E se às vezes era laudatória a letra colocada naqueles ritmos, de outras era francamente gozadora e crítica.
Dentro
desse espírito de crítica, aparece um fox
non sense na revista musical Às Urnas, da qual participaram vários
autores, como Sinhô e Ari Barroso, Luiz Iglésias e Freire Junior, os dois
últimos responsáveis pela letra que dizia:
Gud bai
Blaque
boton queque uoque
Les
ingenues de New York
City prove noter pol
Ó Yess
Blaque
boton queque uoque
Les
ingenues de New York
Fut
bol
Uoter
pol
Very uell tank yu
Ao ary
yu
Au
love yu
Yess
City Bank
gude naite
Gude bay
Les
ingenues de New York
Fut bol
Como podemos ver, a letra é uma justaposição
de signos em língua inglesa, familiares aos ouvidos do povo brasileiro,
ortográfica e foneticamente adaptados ao código português. Segundo Ruiz (1984:128), a canção é uma mixórdia de palavras estropiadamente escritas,
propositadamente atiradas ao ritmo,
numa autêntica gozação àqueles que andavam coletando versos das canções americanas lançadas pelos filmes.
A
partir da década de 30, intensifica-se a influência americana através do cinema
falado. O american way of life é
glorificado em nossas telas e a elite, que até então usava e abusava dos
empréstimos da língua francesa, adere à moda do inglês exportado pelos Estados
Unidos. O samba, sempre atento
às influências culturais e ao comportamento da classe dominante, nunca perdeu a
oportunidade de criticar e denunciar o que era considerado índice de
aculturação. Um bom exemplo dessa denúncia é o samba de Noel Rosa, Não tem tradução, que diz entre outras
coisas que
O cinema falado
É o
grande culpado
Da
transformação
e que
Amor lá no morro é amor prá chuchu
As
rimas do morro não são "I love you"
E
esse negócio de alô
Alô boy, alô John,
Só
pode ser conversa de telefone...
Em
1932, Lamartine Babo compunha o fox-humorístico Canção para inglês ver. Na partitura, Lamartine nomeia o gênero
como "fox-charge". Vejamos a letra do que foi considerado como a obra
prima do non-sense de Lamartine:
I love you
forget
sclaine
maine
Itapiru
morguett
five underwood
I
shell,
no
bond Silva Manoel
Manoel
Manoel
I
love you
To
have steven via-Catumby
Independence
lá do Paraguay
studebaker... Jaceguay!
Iés,
my glass (bis)
salada
de alface (bis)
fly tox my till...
standard oil...
.................................
Forget
not me
Of!...
I
love you!
abacaxi...
whisky...
off
chuchu
malacacheta;
independence day
no
street-flesh me estrepei...
elixir de inhame (bis)
mon Paris je t'aime...
sorvete
de creme...
my
girl good-night
oi!
double
fight
isto
parece uma canção do oeste
coisas horríveis lá do far west
do
"Thomas Meiga"
com
manteiga!...
My
sandwich!...
eu
nunca fui Paulo Escrich!
meu
nome é Larky and Claud
-John Felippe Canaud
..........................
Light
and Power
Companhia
Limitada
Ai!
You!
The
boy-scott avec
boi
Zebu
Lawrence
Tibeti com feijão tutu
trem
de cozinha
não
é trem... azul!
Lamartine faz uma "salada" de
signos em língua inglesa conhecidos no Brasil, inventa outros e os mistura a
signos em língua portuguesa. Essa mistura se transforma num jogo rimado dentro
do ritmo do fox-trot. A justaposição
dos signos funciona como metáfora de sua visão crítica da cultura brasileira,
na década de 30, pois nessa década, ensaia-se um movimento em favor da música
popular brasileira que pode ser detectada em outras composições como Não tem tradução, Alô John e Good Bye.
Lamartine
Babo, ao denominar a canção de "fox-charge", já nos adianta que sua
intenção é satirizar e provocar o riso diante de um fenômeno que ele rejeita: a
invasão da música americana na figura do fox-trot.
Para atingir esse efeito, caricaturiza o estilo musical compondo um fox acompanhado de uma letra non sense, em forma de signos deslocados
de seus eixos sintagmáticos/paradigmáticos. O texto verbal, enquanto signo em
si mesmo, de acordo com a semiótica peirciana, é apenas um qualissigno, uma
qualidade que só nos aparece em forma de sensação, a sensação de se estar
ouvindo algo em inglês. Os signos, que somados deveriam formar um texto
coerente, não representam objeto algum, são signos a procura de seus objetos.
São remas, ou seja, signos representantes de objetos possíveis, que permitem a
cada ouvinte/leitor inúmeras possibilidades de interpretação. O título já nos
avisa que não devemos levar este "fox"
a sério, pois a expressão "para
inglês ver" significa algo que aparenta ser o que não é, simula e
oculta uma realidade não conveniente". A letra da canção é só "para
inglês ver". O jogo polissêmico dos significantes gera interpretações
interessantes. Assim, "shell",
por exemplo, na primeira estrofe, tanto pode ter como interpretante a Companhia
de Petróleo Shell como o modal "shall",
que combina sintaticamente com o pronome pessoal de primeira pessoa do singular
"I". A rima "I love you" "com
chuchu", que Noel vai repetir no seu samba Não tem tradução, aparece na segunda estrofe precedida pelos signos
"abacaxi" e "whisky",
representando respectivamente símbolos do nacional e do estrangeiro. Poucos
versos, além de "I love you",
são semanticamente decodificáveis, mas mesmo assim o texto produz sentido. Na
primeira estrofe, encontramos o verso, já citado, "I shell", que pode ser semioticamente decodificado como índice
de perda de identidade nacional, pois, na época em que esse samba foi composto,
o petróleo ainda não "era nosso". Na segunda estrofe, encontramos
"No estreet-flesh me
estrepei...", sendo "street-flesh a pronúncia aportuguesada para straight flush, metonímia de jogo de
pôquer (poker), também importado dos
Estados Unidos. O verso em francês, "Mon
Paris je t'aime" pode ser interpretado como índice de saudosismo da
cultura humanista européia que estava sendo trocada pela cultura tecnicista
americana. Essa sensação é reforçada pela ambigüidade do verso "Coisas
horríveis lá do far west", na
mesma estrofe. "Far west"
pode ser lido como índice dos filmes que retratam o desbravamento do oeste
americano e, ao mesmo tempo, como índice, portanto metonímia, dos Estados
Unidos. Outros signos como, "Shell",
"Standard Oil" e "Light and Power", aparecem como
signos de colonização.
A
canção de Lamartine traz um único índice da influência francesa, mas, cinqüenta
anos depois, Rogério Rossine e Nei Lopes[2]
marcam a influência francesa quando compõem A neta de madame Roquefort com críticas a burguesia sempre sujeita
a influências estrangeiras. A maior parte da canção utiliza um bom número de
palavras francesas incorporadas ao português para criticar os hábitos da
burguesia, simbolizada pela personagem Madame Roquefort (uma marca de queijo de
prestígio na elite brasileira). Os quatro últimos versos falam da neta da
madame que, como sua avó, também não fala português, mas inglês. As duas
personagens simbolizam duas fases da aculturada burguesia brasileira cuja
identidade, outrora afiliada à cultura francesa, agora se identifica com a
americana. Vejam a letra a seguir:
A
NETA DE MADAME ROQUEFORT
Rogério Rossini - Nei Lopes
Madame
Roquefort traz cada vez melhor o seu charme burguês
E já tem quase oitenta e três
Da Rua do Chichorro foi morar no morro mas fala francês
Sua garconière tem bufê, étagère e um lindo sumier
Só tem filé mignon, maionese, champignon, champanhe e vinho rosé
(do bom Chateau Duvalier que é o que tem melhor buquê)
Já por volta das sete, ela pega o chevette e vai fazer balé
De sapatilha de croché,
Depois, no Arpoador, com seu maiô de tricô, ela não faz forfait
De bustier com fecho-eclair
E quando chega a noite ela vai à boate com seu chevrolet
Mas quem dirige é o chofer
E você imagine que nem no Regine's ela paga couvert
(É hors-concours na discotèque, opinião de Eddie Barclay)
Porém na gafieira, ela é bem brasileira no modo de ser
(collant grená, saia godê)
Comendo croquete, tomando grapette de pé no bufê
Com seu vestido de plissê
E quando ouve o trumpete, mesmo em fita cassete
Pega rouge e baton fazendo um charme pro garçon
Retoca a maquiagem pra manter a boa imagem
E sai dançando ao som de um belo solo de piston
Numa canção de Jean Sablon
E a neta de Madame, por mais que eu reclame,
Por sua vez, também não fala português
Seguindo tradição, sua comunicação é no idioma inglês:
(é tudo rap, body-board, CD-rom e CD-player)
Este país não é mesmo sério, já dizia um bom gaulês!
Uma outra sátira que merece nosso
comentário é a marcha Good Bye, de Assis Valente.
"Good-bye, good-bye boy", deixa a
mania do inglês
Fica
tão feio prá você, moreno frajola
Que
nunca freqüentou as aulas da escola
"Good-bye,
good-bye boy", antes que a vida se vá
Ensinaremos
cantando a todo mundo
B-e-bé,
b-i-bi, b-a-bá
Não é
mais boa noite, e nem bom dia
Só se fala "good morning, good
night"
Já se
desprezou o lampião de querozene
Lá no
morro só se usa a luz da Light (Oh! Yes)
Essa
marcha tenta persuadir o ouvinte a condenar a atitude do povo simples do morro
que, na tentativa de se parecer com a elite, começa a usar expressões em
inglês. Há um verdadeiro manifesto pela preservação da cultura nacional,
materializado não apenas na rejeição da língua estrangeira, mas também na não
aceitação do avanço da civilização, aqui representado pela luz elétrica. O
vocativo "moreno frajola" separa a figura do interlocutário do
destinatário ouvinte, tentando conseguir a adesão ideológica desse último. O
ouvinte não é censurado por usar expressões em inglês. O alvo da censura é o
"moreno frajola que nunca freqüentou as aulas da escola". A
discriminação de classe é clara na canção. Ao homem do povo é vedada a
educação, a aprendizagem e o uso da língua estrangeira, e até o conforto, pois
o autor se ressente do fato de o lampião de querosene ter sido substituído pela
luz da Light.
Em
março de 1933, Jurandir Santos grava, de sua autoria, a "marcha
turística" Alô John. O
autor/destinatário/locutor/interlocutor se dirige ao turista/interlocutor,
tentando persuadi-lo a participar do carnaval brasileiro. Diz a letra:
Alô John
Cambeque
prá folia
Se
não reve mone
Não
faz mal
Alô,
ô, ô, ô
Alô
John
Cambeque
prá folia
Inde
Brasil
Reve muito chope
Opp
opp (bis)
American if drinque
Não
estope
Opp
opp (bis)
No
carnaval
No
bode chilipe
Ipe, ipe (bis)
American
cambaleia
Como
chipe
Ipe,
ipe (bis)
A marcha é um convite ao turista americano
para passar o carnaval no Brasil. O apelo ao prazer está presente nos signos
estereotipados da cultura brasileira: folia, orgia e bebida (chope), todos
índices de carnaval. A persuasão é feita através da oferta do prazer e da
garantia de não ser preciso ter dinheiro (se não reve mone não faz mal). O
dêitico vocativo Alô John identifica
o interlocutário que se diferencia do destinatário ouvinte que fica como
observador da conversa, como testemunha do convite que é feito ao turista
americano. Signos do código lingüístico inglês são adaptados fonológica,
ortográfica, e sintaticamente à língua portuguesa.
O
mesmo procedimento de adaptação de um código ao outro aparece na marcha OK, de Jurandir Santos, gravada por
Lamartine Babo e Carmem Miranda, em 1934. Vejamos a letra:
Ô quei, ô quei
Estope
que eu já cansei
Ii...
Ii... esse ife iu plise
Ô
quei
Por
tua causa foi que me cansei
Luque...
luque para mim
Vê
como estou fagueiro
ô
ô...ÔÔ...ÔÔ...quei
I
ai reve pouco dinheiro
Chête... chête... dice dar
Estão
nos espiando
ô
ô...ÔÔ...ÔÔ...quei
Embora
se esteja brincando
Jurandir Santos estabelece, nesta marcha,
um diálogo com sua composição anterior, Alô John. O locutor/interlocutor pode
ser o John que teria atendido o
convite para voltar (cambeque) para a folia e diz ok, aceitando o convite. O interlocutor confessa seu cansaço, pede
para parar (estope) e admite que tem pouco dinheiro (ai reve pouco dinheiro),
reforçando a hipótese levantada na marcha anterior (se não reve mone, não faz
mal).
Os
signos em língua inglesa aparecem em outras composições. Assis Valente, que já
havia registrado a influência do inglês na cultura brasileira em Good-bye, observa o interesse americano
pelos nossos ritmos e compõe o samba Brasil
Pandeiro. Recusado por Carmen Miranda pela irreverência da letra, o samba
foi gravado pelo grupo "Anjos do Inferno", em 1941.
Brasil Pandeiro.
Chegou
a hora dessa gente bronzeada
Mostrar
seu valor
Eu
fui à Penha
E
pedi
À
padroeira para me ajudar
Salve
o morro de Vintém
Pendura
a saia
Eu
quero ver
Eu
quero ver
Eu
quero ver o tio Sam
Tocar
pandeiro
Para
o mundo sambar.
O
tio Sam está querendo
Conhecer
a nossa batucada
Anda
dizendo que o molho da baiana
Melhorou
seu prato
Vai
entrar cuscuz
Acarajé e abará
Na
Casa Branca
Já
dançou a batucada
Com
Iôiô e Iaiá
Brasil,
Esquentai vossos pandeiros
Iluminai
os terreiros
Que
nós queremos sambar.
Noutras terras
Num batuque de matar,
Batucada
Reuni vossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressões que não tem par
Oh! meu Brasil,
Brasil
Brasil
esquentai vossos pandeiros
Iluminai
os terreiros
Que nós queremos sambar
Segundo
Sant'Anna (1986:209), Brasil Pandeiro poderia
significar essa posição muita vez ambígua que valoriza o nacional, mas se
desvanece ante o reconhecimento lá fora. Esse reconhecimento, na verdade,
nada mais é do que uma estratégia da chamada política de boa vizinhança, posta
em prática pelos Estados Unidos. Sob o pretexto de se estabelecer um
intercâmbio cultural entre os Estados Unidos e a América Latina, consolida‑se
a hegemonia americana. Através de iniciativas de intercâmbio cultural, Carmen
Miranda foi para a América e, indiretamente, ajudou a difundir a imagem
estereotipada e exótica do Brasil. Em Brasil Pandeiro, Assis Valente reproduz
essa imagem exótica, povoada de iôiôs e iaiás. Aliás, há na canção uma referência
ao sucesso de Carmen nos Estados Unidos, quando o poeta diz que (o Tio Sam) anda dizendo que o molho da baiana
melhorou seu prato.
O inglês continuou a ser usado no samba, quase sempre com o objetivo de
criticar o americanismo. Os habitantes da favela continuam sendo o alvo
principal das críticas à adesão aos ritmos americanos. Denis Brian, compositor
paulista, é mais um que se incumbe de criticar a imitação dos comportamentos
americanos. Segundo Gomes (1987:34), Denis Brian bandeou‑se a falar dos crioulos de uma favela bem carioca, e que
viviam entusiasmados com o lançamento do boogie‑woogie na década de 1940.
Os versos de Brian diziam
Chegou o samba minha gente
lá da terra do Tio Sam com
novidade
E ele trouxe uma cadência maluca
pra mexer com a cidade,
O boogie‑woogie,
boogie‑woogie
Boogie‑woogie
a nova dança que balança,
mas nGo cansa,
a nova dança que faz parte
da política
da boa vizinhança
Na
década de 70, Candeia denuncia a influência estrangeira nos jovens das
comunidades carentes, que estariam se afastando dos valores de seus
antepassados, com o samba de partido Eu
não sou africano: Eu não sou
africano/Nem norte-americano/Ao som da viola e pandeiro/Sou mais o samba
brasileiro. Na mesma época, o sambista João Nogueira grava Não tem tradução, de Noel Rosa e, em
1986, Eu não falo gringo, de sua
autoria, em parceria com Nei Lopes, retomando o tema de crítica ao americanismo
e à influência da língua inglesa na cultura brasileira.
EU NÃO FALO GRINGO
Eu não falo gringo
Eu só falo português (bis)
Meu pagode foi criado
Lá no Rio de Janeiro Refrão
Minha profissão é bicho
Canto samba o ano inteiro
Eu falei prá você
Eu aposto um "eu te
gosto"
Contra dez "I love you"
Bem melhor que hot‑dog
É rabada com angu
Gerusa comprou uma blusa
Destas made em USA
E fez a tradução
A frase que tinha no peito
Quando olhou direito
Era um palavrão
Refrão
I speak for you
Refrão
Ou me dá um terno branco
Ou não precisa me vestir
Bunda de malandro velho
As vezes eu sinto um carinho
Por este velhinho chamado
Tio Sam
Só nGo gosto é da
prosopopéia
Que armou na Coréia e no
Vietnã
Refrão (bis)
Tem gente que qualquer dia
Fica mudo de uma vez
Não consegue falar gringo
Esqueceu do português
Tu é dark,
ele é hippie, ele é punk
Todos dançam funk lá no
dancin'days
Mas cuidado com este
paparico
O FMI tá de olho em você.
Refrão
Brasileiro eu falei
Na
gravação de João Nogueira, segue‑se a seguinte parte falada: Everybody macacada. Não tenho nada contra,
mas desmunheca em brasileiro. Vamos valorizar o produto nacional.
Como
podemos constatar, o locutor/destinador se identifica como carioca, malandro
velho, ligado ao jogo do bicho e ao samba, signos que se atualizam como índices
de brasilidade. O refrão reforça essa brasilidade, quando o destinador afirma
que não fala "gringo" (idioma
estrangeiro/inglês), mas "brasileiro" (idioma nacional).
Encontramos uma intertextualidade com o texto de Noel Rosa, Não tem tradução, que diz: "amor
lá no morro é amor prá chuchu/as rimas do morro não são I love you". Em Eu não falo gringo, os autores desprezam
a proposição estrangeira e pregam a
superioridade da proposição "eu te gosto". Há também uma crítica ao
hábito americano do fast food que
vem sendo adotado pelos brasileiros cosmopolitas. Os autores dizem que
"rabada com angu" é melhor que hot
dog.
A
alienação do brasileiro é atacada quando se faz referência à moda das camisetas
com dizeres em língua inglesa, geralmente não decodificados por seus usuários,
o que pode gerar constrangimento como o descrito na canção. A crítica ao modo
de vestir se estende à calça Lee, outro símbolo americano. A belicosidade
americana é criticada na condenação às guerras da Coréia e do Vietnã. Na última
estrofe, os autores criticam a adesão aos ritmos estrangeiros e às novas formas
de comportamento, divorciadas da cultura brasileira. Finalmente, o problema
econômico é abordado com relação ao "Fundo Monetário Internacional".
A sigla FMI, capaz de gerar uma cadeia de interpretantes relacionados com os
problemas econômicos, é colocada lado a lado com outros índices (hippie, dark, funk, punk, Dancin'Days), reforçando a idéia de dependência cultural e
econômica. Ao final de sua interpretação, o cantor critica a mania de imitação
e prega a valorização do produto nacional.
O
samba, desde o advento do rock, vinha perdendo seu espaço nos meios de
comunicação, que se rendiam ao fascínio pelos produtos estrangeiros. As
estações FM praticamente só tocavam
música estrangeira, principalmente americana. Os sambistas estavam
sempre denunciando a diminuição do espaço para divulgação de sua música. Dentro deste espírito, o sambista Dicró
grava, em 1988, o samba Mr. Dicró, de sua autoria e que também dá nome ao LP
lançado pela RCA Victor. Em Mr. Dicró, o compositor denuncia a supervalorização
do que é produzido em inglês em detrimento do samba autêntico e do idioma
nacional, registra o fascínio pela moeda americana e o desejo de se fazer
sucesso no exterior. A gravação começa com uma abertura musical ao estilo dos
musicais da Broadway com a voz de um locutor que diz: And now ladies and gentlemen, RCA Victor do Brasil presents Mr. Dicró
(daicró). A apresentação gera uma expectativa no ouvinte, que é em seguida
quebrada pelo dialeto português não‑padrão do sambista: Tá aqui ó, gente boa, tá aqui ó. Legal mermo.
O cantor tenta cantar uma canção em inglês, facilmente identificada como All the way (um dos grandes sucessos de Frank Sinatra), mas,
desiste no primeiro verso dizendo, Nossa
Senhora, mas não vai dá não e, em seguida, dirige‑se ao maestro e
diz, Maestro, dá aquele tom se o senhor é
home. E o samba começa:
É, pois é
Eu também já mudei de opinião
Vou querer ganhar em
dólar
Escondido do leão
(camon everybody)
Vou traduzir meus pagodes
Vou cantar só em inglês
Vou tocar nas FMS
Isso eu garanto a vocês
Pode me acreditar
O povo vai pedir bis
Quando eu me apresentar
No Olimpia de Paris
(au revoir)
everybody macacada
Vou ganhar muito dinheiro
Sendo internacional
Vou armar um bom pagode
Lá no palco do Carnegie Hall
Vou curtir Miami Beach
Em vez de
Copacabana
Em Cash Box e Pearl Burg
Vou estar toda semana
Em Miami e Las Vegas
Eu sei que vou abafar
Pois em língua sou formado
Nos botecos da praça Mauá
Cachaça só on the rock
Whisky só escocês
I need to lover
There where's do not disturb
I want to live in Chatuba
A letra inicia com a promessa do autor de traduzir seus
"pagodes" e cantar em inglês, pois, em sua opinião, essa é a forma de
ser valorizado e ganhar dinheiro. Essa intenção é parodiada na última estrofe
"em inglês", na realidade um "embolês". A gravação se
encerra com uma fala do cantor onde ele ironiza a mania do uso de expressões em
inglês. Diz ele: Vou levar minha black
girl, não black girl é minha nega. E como é que se fala sogra em inglês mesmo?
Sei lá. Acho em inglês nem tem sogra. Meu negócio agora é money. Ta aqui ó,
rapaziada. Ta aqui. Adeus, ó ECAD do Brasil.
A
crítica de Dicró difere das anteriores,
porque não fica limitada à questão do uso da língua inglesa na sociedade brasileira. Ele vai além, ao denunciar a
perda de espaço para a divulgação da música nacional, e até aborda a questão
dos direitos autorais, quando dá adeus ao ECAD (Escritório de Arrecadação e
Distribuição), órgão responsável pela arrecadação dos direitos autorais, tão
criticado pelos artistas brasileiros. Ao trocar, simbolicamente, o Brasil pelos
Estados Unidos, o artista não apenas anuncia a possibilidade de fazer sucesso
lá fora, como também a de ver respeitados seus direitos autorais.
Um
exemplo mais recente de crítica aos estrangeirismos é o Samba do Approach, de Zeca Baleiro, gravada por Zeca Pagodinho no
CD Vamo Imbolá.
SAMBA
DO APPROACH
Venha
provar meu brunch
Saiba
que eu tenho approach
Na
hora do lunch
Eu
ando de ferryboat
Eu
tenho savoir-faire
Meu
temperamento é light
Minha
casa é hi-tech
Toda
hora rola um insight
Já fui
fã do Jethro Tull
Hoje
me amarro no Slash
Minha
vida agora é cool
Meu
passado é que foi trash
Fica
ligada no link
Que eu
vou confessar my love
Depois
do décimo drink
Só um
bom e velho engov
Eu
tirei o meu green card
E fui
pra Miami Beach
Posso
não ser pop star
Mas já
sou um noveau riche
Saca
só meu background
Veloz
como Damon Hill
Tenaz
como Fittipaldi
Não
dispenso um happy end
Quero
jogar no dream team
De dia
um macho man
E de
noite drag queen.
Ao usar os empréstimos da língua
inglesa, Baleiro ironiza o excesso de expressões em inglês presentes no
cotidiano da burguesia Brasileira.
A rejeição ao inglês registrada nas letras dos sambas tem sua contrapartida na política de ensino de línguas no país que não oferece um ensino de qualidade para as classes populares. Na verdade, há um grande preconceito lingüístico contra as classes populares, sendo comum ouvirmos o comentário politicamente incorreto “não sabem nem português para que aprender inglês”. Esse enunciado evidencia uma nítida rejeição pelo dialeto das classes populares, como se não fosse um falar legítimo e, ainda, pela negação da interação com o estrangeiro, privilégio das elites intelectuais e econômicas. A língua inglesa acaba sendo um privilégio das classes dominante.
A
necessidade da burguesia de aprender a língua inglesa é bem retratada por
Caetano Veloso, no final da década de 60, na voz de Gal Costa, em Baby, baby:
(...)
Você
Precisa
aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o
que eu não sei mais
(...)
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul, da América do Sul
Você precisa, você precisa
Não sei leia na minha camisa
Baby, baby, I love you...
O tradicional “eu te amo” é substituído pelo enunciado em inglês – I love you – impresso numa camiseta. O poeta dirige-se à mulher amada usando uma expressão de afetividade em inglês – baby – e enfatiza a importância da língua inglesa, no mundo atual, no verso “você precisa aprender inglês”. Medina (1973:112) analisa esses versos, dizendo que
Caetano faz uma apresentação do que que é preciso saber (“o que que eu sei e o que que eu não sei”), coloca em questão a necessidade de aprender inglês, mesmo morando na melhor cidade da América do Sul, é preciso aprender, porque é a única maneira de ler aquilo que está “na minha camisa” e que é a frase “I love you”.
Ao contrário do samba, o tropicalismo não rejeita a cultura do outro. Mistura pólos opostos como o sagrado e o profano, o rural e o urbano, a poesia e a comunicação de massa, o berimbau e a guitarra, unindo o ritmo brasileiro e o estrangeiro, o português e o inglês. Essa mistura retrata, no nível simbólico, a realidade brasileira. O foco não é mais a cultura do morro, mas a cultura da comunicação de massa, vivida pela classe média nos centros urbanos.
Uma composição que consegue
representar esse sincretismo de ritmos e de religião e mitos importados é BATMACUMABA de Gilberto Gil e Caetano
Veloso. A superposição de signos das duas línguas dá origem a um poema concretista
em forma de asas de morcego (bat em
inglês). A superposição do ritmo da macumba e do som da guitarra, instrumento
típico do rock, produz uma sonoridade sincrética em busca de uma música
universal. Favaretto (1979:75) afirma que Batmacumba realiza uma superposição dos códigos verbal, sonoro e visual, com
referências culturais sincréticas: Batman (os quqdrinhos, e por exrtensão a indústria cultural),
macumba (elemento cultura brasileiro), iê-iê-iê (música jovem, proveniente do
rock).
batmacumbaiêiêiê batmacumbaobá
batmacumbaiêiêiê batmacumbao
batmacumbaiêiêiê batmacumba
batmacumbaiêiêiê batman
batmacumbaiêiêiê bat
batmacumbaiêiêiê ba
batmacumbaiêiêiê
batmacumbaiê
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaiê
batmacumbaiêiêiê
batmacumbaiêiêiê
batmacumbaiêiêiê ba
batmacumbaiêiêiê bat
batmacumbaiêiêiê batman
batmacumbaiêiêiê batmacum
batmacumbaiêiêiê batmacumba
batmacumbaiêiêiê batmacumba
batmacumbaiêiêiê batmacumbaobá
É na
língua inglesa que Caetano Veloso encontra asilo para cantar as tristezas do
exílio em Londres na canção London,
London. Ele reclama da solidão (I’m
lonely in London) e, por contraste com a paz em Londres, remete às ações
militares no Brasil que culminaram em tortura e assassinato de opositores à
ditadura ( A group approaches a
policeman/He seems so pleased to please them/It´s good at least to live and I
agree).
Sá e
Guarabira, apesar de não pertencerem ao movimento tropicalista, também
compuseram uma canção falando de um outro tipo de exílio, o voluntário, em
busca de oportunidades de trabalho bem remunerado. Em Ziriguidum Tcham, abordam a problemática da emigração para os
Estados Unidos. Os autores descrevem o fascínio por Nova York (eles são o que rola, eles fazem a moda)
e a descriminação sofrida pelos brasileiros/emigrantes (cucarachas gerais). Em dois versos temos a mistura clara das duas
culturas: Crack, rap, hippie, rock,
hop/Walk, don´t walk, now siriguidum, tcham.
Vários compositores brasileiros
compuseram canções em inglês, mas a intenção era rejeitar a identidade
brasileira, o que se comprova na adoção de pseudônimos estrangeiros de forma a
simular uma produção americana e, portanto, “de maior qualidade”. Entre os mais
famosos estão Morris Albert (Feelings e
She is my girl). Terry Winter (Our
love), B. Anderson (Tell me once
again) e Tony Temple (Summer Holiday).
Caetano
tem outra postura e suas produções em inglês (The empty boat; A little more blue; Sugar cane fields forever, Nine out
of ten; It’s a long way, etc) representam uma tentativa de fazer um tipo de
música universal, sem nenhuma rejeição à cultura brasileira. Nada mais natural
do que se valer do inglês que, naquela época, já se firmava como língua franca.
Os
tropicalistas ignoravam o preconceito contra o estrangeiro e incluíam em suas
produções elementos da cultura americana, sem, contudo, rejeitar as próprias
raízes. Mais recentemente, Gilberto Gil compôs Pela Internet, com citação de Pelo
Telefone (Donga e Mauro de Almeida) e mais uma vez está presente o
sincretismo cultural: gigabytes e orixás, Nepal, Praça Onze e videopôquer.
Criar
meu web site
Fazer
minha home-page
Se faz
um barco que veleje
Que
veleje nesse infomar
Que
aproveite a vazante da infomaré
Que
leve um oriki pro meu velho orixá
Ao
porto de um disquete de um micro em Taipé
Um
barco que veleje nesse infomar
Que
aproveite a vazante da infomaré
Que
leve meu e-mail até Calcutá
Depois
de um hot-link
Num
site de Helsinque
Para
abastecer
Eu
quero entrar na rede
Promover
um debate
juntar
via Internete
Um
grupo de tietes de Connecticut
De
Connecticut acessar
O
chefe da Macmilícia de Milão
Um
hacker mafioso acaba de soltar
um
vírus pra atacar programas no Japão
eu
quero entrar na rede pra contactar
Os
lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o
chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá
na Praça Onze tem um videopôquer para se jogar
Os
dados que apresentamos nos induzem a afirmar que, praticamente, todas as vezes
em que encontramos palavras da língua inglesa no samba, estas estão a serviço da
crítica ao imperialismo econômico e
cultural, exercido pelos Estados Unidos, e ao fascínio que os
brasileiros sentem pelo american way of
life. Os desvios sintáticos e as alterações fonológicas servem para
reforçar o fato de que as classes populares, metonimicamente representadas
pelos sambistas, não têm conhecimento da língua inglesa. Essa falta de
intimidade com o idioma estrangeiro traz, como conseqüência, um preconceito
social pelas elites que se julgam donas do idioma estrangeiro, preconceito este
tão bem retratado em Alô Boy, de
Assis Valente. Se por um lado, o samba se empenha em defender a cultura
brasileira, insurgindo‑se contra os modismos importados dos EEUU, por
outro lado, colabora na propagação da ideologia que justifica a divisão de
classes, pois o objeto da crítica é sempre o proletariado. Podemos, pois,
concluir que a noção de cultura brasileira que o samba divulga, principalmente
na década de 30, é ingênua e estereotipada.
A
música popular está sempre fotografando o cotidiano. O foco da critica, feita
pelos sambistas na década de 30, retomadas nas décadas de 80 e 90, era a
importação de costumes americanos e a mania do brasileiro de usar expressões em
inglês. A solidão do exílio em função de perseguição política (veja London, London de Caetano Veloso) ou de
busca de oportunidades (veja Ziriguidum
Tcham de Sá e Guarabira) são a tônica de outras canções.
A língua inglesa está presente em vários momentos da música popular brasileira: no título de uma canção dos Titãs, Go Back, no refrão de Garota Nacional (Beat it laun,daun daun) do Skank, em brincadeiras do rock brasileiro (eu quero passar um weekend com você; nosso amor é tipo one-way; nem sempre é so easy se viver), no escracho de alguns críticos como Dicró em Mr. Dicró (em versos tais como I need to lover ou no refrão everybody macacada); e até na sonoridade da voz de Ed Mota quando canta Manuel e pronuncia Manuel e céu (Manuel foi pro céu) como som da palavra inglesa well.
Com
samba no pé e inglês na ponta da língua nossa música brasileira vai
registrando, ironizando, satirizando, criticando, deglutindo e, até mesmo,
reverenciando a cultura do outro que também é nossa, pois as fronteiras estão
ficando cada vez mais tênues e a língua inglesa hoje é a língua de todos e não
apenas dos países de língua inglesa. As línguas não são mais produtos
territorizados, e, no caso do inglês, como ressalta Milton Santos (2000:110), o
espaço dos pontos, ou seja, o não-espaço é o espaço geográfico desse
novo império lingüístico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
EFEGÊ, Jota [João Ferreira Gomes]. Figuras
e coisas da música popular brasileira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978
FAVARETTO, C. Tropicália: alegoria,
alegria. São Paulo: Kairós, 1979.
GOMES, Bruno. Adoniran; um sambista
diferente. Rio de Janeiro: Martins Fontes\FUNARTE,
1987. (MPB, 21)
MEDINA, C.A.Música popular e comunicação.
Petrópolis: Vozes, 1973.
RUIZ, Roberto. Araci Cortes; linda
flor. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1984.
PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e. A
língua inglesa enquanto signo na cultura brasileira.
Belo Horizonte: Faculdade de Letras da
UFRJ, 1991. (Tese de Doutorado)
SANT'ANNA, Affonso Romano de. Música
popular e moderna poesia brasileira. 3. ed. Petrópolis:
Vozes, 1986.
[1] Agradeço a vários colaboradores
anônimos, pessoas a quem pedi ajuda em lista de discussão e que me enviaram
algumas das letras de música que utilizo neste texto.
[2] Antes de A Neta de madame Roquefort, Nei Lopes, em parceria com João Nogueira,
produziram outro samba – Eu não falo
gringo – criticando o mesmo fenômeno, como veremos mais à frente.