MARI, Hugo; WALTY, I.; VERSIANI, Z. Ensaios sobre leitura. Belo Horizonte: PUCMINAS, 2005.228 p.

Resenhado por Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG/CNPq)

 

 

Ensaios sobre leitura é a primeira publicação do CIPEL (Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Linguagem) da PUCMG. O novo Centro de Estudos estréia de forma marcante, mostrando não apenas a qualidade de seus trabalhos, mas a interação com outros pesquisadores de instituições brasileiras (UFMG, USP e Unicamp) e também do exterior, com a inclusão da entrevista de Anne-Marie Chartier do Institut National de Recherche Pédagogique  (INRP) de Paris.

Se não fosse a introdução de Ângela Vaz Leão, o leitor ficaria sem saber que a obra é produto do CIPEL, pois não há nenhuma referência a esse Centro de Pesquisa em nenhuma outra parte do volume, incluindo a orelha do livro. Sente-se também a ausência de referência às afiliações institucionais após os nomes dos autores em cada um dos 10 trabalhos. Para recuperar essas informações, o leitor tem que ir ao final do livro ou voltar à introdução.  

Os textos foram divididos pelos organizadores em duas partes: “Leitura: condições, fundamentos e ensino” e “Leitura: gêneros textuais e processos de referenciação”. No entanto, ao ler os capítulos, percebe-se que a divisão é pouco consistente, pois também encontramos questões de ensino na segunda parte e reflexões sobre gêneros na primeira parte. Ao rotular os trabalhos de forma tão categórica, os organizadores acabam prometendo uma separação entre temas que não acontece na prática, o que de forma alguma invalida a boa qualidade da obra.

      Como o leitor é também co-autor, esta resenha não segue a ordem dos ensaios. Afinal, como lembram Mari e Mendes, autores do ensaio “Processos de leitura: fator textual, [E]m toda atividade de compreensão de um texto, o leitor deve transitar entre dois espaços: um que lhe assegura certas liberdades na reconstrução dos fatos textuais; outro que lhe impõe orientações determinantes para o sentido de partes recorrentes em um texto. (p.157)

     Assumindo essa liberdade, recomendo começar a leitura pelo texto de Márcia Abreu, delicioso ensaio sobre a história do livro e da leitura, tendo como foco central os relatos de viagem ao Brasil de Hans Staden. Já o texto de Anne-Marie Chartier poderia tanto ser a segunda ou a última leitura, pois suas reflexões ora funcionam como contraponto e ora como diálogo com os outros textos. Sua leitura dá uma visão abrangente de vários aspectos teóricos e aplicados da pesquisa sobre leitura.

Em minha opinião, o texto mais polêmico é o de Perini – “Pelos caminhos da perplexidade: uma receita para ler sem entender” – que encontra contrapontos não apenas na entrevista de Chartier, mas também em outros ensaios dessa coletânea.

Perini começa seu texto de forma perigosamente generalizante ao afirmar, com letras maiúsculas, que “NOSSOS ALUNOS LÊEM MAL”e acrescenta que “nós professores não lemos tão bem como deveríamos”. Atribui essa catástrofe ao não reconhecimento dos gêneros e à ausência de conhecimentos prévios, exemplificando com experimentos de outros autores e do famoso artigo nonsense Transgressing the Boundaries: Toward a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity’’, de Sokal, aceito para publicação pelos editores do periódico Social Text sem se darem conta de que se tratava de uma paródia”. Apesar de não duvidar da importância do conhecimento prévio e dos gêneros, acredito que nem Sokal concordaria com a tese extremista de Perini, pois ele próprio reconhece que seu texto só poderia ser lido por especialistas em física quântica e que os editores foram persuadidos pela credibilidade do autor. A respeito do episódio, Sokal (1997) assim se posiciona:

 

It proves only that the editors of one rather marginal journal were derelict in their intellectual duty, by publishing an article on quantum physics that they admit they could not understand, without bothering to get an opinion from anyone knowledgeable in quantum physics, solely because it came from a “conveniently credentialed ally'' (as Social Text co-editor Bruce Robbins later candidly admitted), flattered the editors' ideological preconceptions, and attacked their ``enemies''.

 

Logo, não ter conhecimentos prévios necessários para ler determinados textos não é nenhum pecado do qual os alunos precisam ser salvos, como Perini sugere na página 37.

      Chartier, mais otimista que Perini, afirma que “A universidade é ainda um lugar em que se “aprende a ler” em domínios de especialidade e haverá sempre textos que um adulto é incapaz de ler porque são muito difíceis de serem compreendidos sem ajuda” (p.53). Sua afirmação me leva a concluir que não é assintomático que sejam publicados livros para nos ajudar a ler Lacan e James Joyce, por exemplo.

       Ao contrário de Perini, que enfatiza a distinção do gênero (literário e informativo) como determinante da estratégia de leitura (p.37-38), Chartier considera  o conhecimento prévio como o fator mais importante para a compreensão de um texto, independente do gênero. Diz ela: “Isso parece evidente quando se trata de um texto científico, mas é também verdade para se ler um romance, um jornal ou uma página de manual” (p.63).

        Perini parece ter uma concepção de texto literário entendido como “paisagem mental subjetiva, eivada de intenções estéticas, insinuações vagas, impressões nebulosas” (p.41-42), diferentemente de Paulino e Walty que, apesar de não negarem o fictício e a dissimulação, adotam uma concepção que “não descola a literatura do social” (p.143).

Paulino e Walty, em um texto sólida e logicamente construído, demonstram que o texto literário pode assimilar outros discursos, “mas que se afasta do pragmático, da utilidade imediata, da informação como referencial que se esgota em um dado” (p.144). Elas apresentam vários exemplos de textos que assimilam o texto publicitário e a notícia de jornal, demonstrando que o texto literário “exige que o leitor participe mais da construção de sentidos, com atenção especial ao modo de enunciar ali inscrito” (p. 147).

Perini suspeita de “que os alunos estejam sendo intensivamente treinados na interpretação de textos literários” e afirma ser grande o percentual de gêneros desse domínio nos livros didáticos. No entanto, reconhece que o estudo fica muito concentrado na compreensão literal, no que é, de certa forma, respaldado por Lopes que afirma que “[O] universo literário permite muitas vertentes de sentido e os LDP (livros didáticos de português) balizam em demasia para o evidente, como se estivessem tratando de gêneros puramente informativos”.

Chama a atenção o fato de Perini defender que ciência envolve compromisso com fatos observáveis e, no entanto, apresente um “diagnóstico” (p.45) sem o rigor científico que advoga. Seu diagnóstico é feito com um corpus datado, composto de livros didáticos de 1992 e 1993 e encontra contraponto no texto de Lopes que analisa livros de 1998 a 2003. Lopes afirma que os livros analisados apresentam “uma seleção diversificada de textos representativos que circulam na sociedade (em relação à autoria e à adequação ao nível dos leitores)”. No entanto, a ensaísta, assim como os autores que cita, também critica as práticas didáticas para o desenvolvimento de habilidades de leitura, e como Perini, aposta no papel dos gêneros.

A autora, a partir de uma filiação teórica sólida, na linha de Bronckart, desenvolve seu ensaio apontando as falhas na forma como o texto de Guimarães Rosa é trabalhado nos livros didáticos e apresentando sugestões de atividades mais prazerosas e instigantes. Dentre eles, está a produção de sinopses e resenhas, desde que criadas condições reais de circulação desses textos. Essa sugestão dialoga com Chartier (p.64), que sugere relatos de leitura, e Dell’Isola (p.95), que aposta na paráfrase em seu ensaio intitulado “Ler e parafrasear: do sentido ao texto, do texto ao sentido”. DellIsola, apoiada na teoria Sentido à Texto, de Zolkovski & Mel'Čuk, advoga que a paráfrase envolve o estabelecimento de relações semânticas e por isso constitui uma boa estratégia para ler o texto e o mundo.

 Maria de Lourdes Matencio, em seu ensaio “A leitura na formação e atuação do professor de Educação Básica”, também apresenta sugestões de atividades de letramento, mas de forma interdisciplinar com a história, a matemática e a geografia. Ela afirma que ensinar a ler e escrever não é função exclusiva do professor de português e defende que o professor do ensino básico seja iniciado a teorias sobre leitura.

O ensaio de Fiorin sobre gênero e tipos textuais é outro texto de caráter mais geral. Fiorin subverte o gênero acadêmico e avisa, no pé de página, que optou por não fazer citações bibliográficas para dar fluência ao texto, mas que a bibliografia utilizada estará ao final do texto. Um leitor experiente identifica a definição de gênero de Bakhtin, “organizações relativamente estáveis caracterizadas por uma temática, uma forma composicional e um estilo” (p. 102) e, provavelmente as contribuições mais conhecidas de Bronckart e Marcuschi. No entanto, considero pouco cooperativo com o leitor o não registro dessas vozes que ajudam o autor a tecer seu texto de modo fluente e elucidativo. O leitor corre o risco de assumir como de Fiorin idéias que ele incorpora ao texto sem a devida referência. Afinal, “o leitor precisa distinguir a presença dessa voz do outro marcada no texto” como lembra Campos em seu trabalho “Linguagem, dialogia, gênero e leitura”, o que fica dificultado no texto de Fiorin, exatamente pelas ausências dessas marcas que o autor nega ao leitor.

Encerro esta resenha com uma citação de Campos: “...a partir dos fragmentos que indicam um certo fechamento, abre a oportunidade para o trabalho criativo do leitor de DC (discurso científico) uma vez que DV (o divulgador) não diz tudo e nem poderia fazê-lo”(p.134). Foi dessa forma que li os 10 ensaios, pois todos me desafiaram a refletir e a estabelecer um diálogo com minhas leituras anteriores. Considero “Ensaios sobre Leitura” leitura obrigatória para todos aqueles que se interessam pelo tema tanto no viés do ensino quanto no da pesquisa.

 

Referências

 

Sokal, A. D. What the Social Text Affair Does and Does Not Prove. In Koertge, N. (Ed.). A House Built on Sand: Exposing Postmodernist Myths about Science, Oxford: Oxford University Press, 1998. Disponível em http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/noretta.html Acesso em 05/01/2006