Eu sou uma linda mulher ou o dia em que fui Júlia
Roberts.
Vera
Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
Em
comum com a linda mulher na tela do cinema só a lingerie preta. Dentro de uma
das taças do sutiã rendado um seio flácido, estriado e murcho. Dentro da
outra taça, um seio novo, bem torneado e empinado, prótese insensível de
espuma de borracha que escondia as cicatrizes que o câncer deixara. As dobras
flácidas do abdome cobriam parte da renda preta da calcinha. Não havia a
menor importância. Afinal, ninguém estava mesmo enxergando as roupas
íntimas. Era a primeira vez que usava aquelas peças, mas as guardava há 14
anos. Desde o casamento. Incluíra no enxoval aquelas roupas sensuais com a
esperança de manter o fogo do parceiro sempre aceso. Mas ele dissera que
aquilo era roupa de puta e que mulher honesta não usava calcinha preta. As
gordurinhas trazidas pelos anos sedentos de prazer diminuíram o tamanho das
peças negras.
Hoje,
antes de sair pro cinema, eu morri de medo que ele desconfiasse que eu tava
usando as roupas de puta. A mulher na tela tá fazendo papel de puta, mas ela
não é muito puta, só no começinho do filme. Depois ela deixa de ser puta.
Ai, aquele homem lindo, rico, estudado, maravilhoso, envolvente... Acho que
ele seria capaz de me amar... Ele
não tem preconceitos. Ele amou a linda mulher mesmo sabendo que ela era puta.
Ele ia me aceitar mesmo sabendo que eu tô usando calcinha e sutiã preto e
que o meu seio mais bonito é o
de borracha. O filme devia ter mostrado o casamento, a casa que deve ser linda...
Ela em casa, esperando ele pro jantar. Acho que ele não almoça em casa.
Milionário não almoça em casa. À noite, ele serve champanhe com morango,
como no primeiro dia, e a beija na boca como no final do filme. Há quanto
tempo não beijo na boca! E faz amor porque ela continua usando a lingerie
preta. Aquele dia, durante a lua de mel, escondi a lingerie preta envergonhada
e só fui usá-la depois da cirurgia. Mas ele nem viu... O câncer me levou um
seio e acho que agora ele não vai mais me chamar de puta. Acho que não
existe puta com um seio só. O filme acabou, sinto que algo em mim tá mudado.
Vou ao banheiro. Dentro do soutien, estão os seios da Júlia Roberts. Meu
cabelo, que a radioterapia tinha deixado curtinho, cresceu. Minhas pernas
estão lindas e durinhas. A barriga desapareceu e as duas pedrinhas de strass,
na cintura da calcinha brilham como dois mini faróis. A luz acende assim que
saio do banheiro. As pessoas na platéia me olham maravilhados. Faço cara de
envergonhada, tento esconder minha beleza e saio do cinema. Meu marido, que
espera por mim dentro do carro, me olha com olhos de cobiça. Não me
reconhece. Resolvo não entrar no carro. Atravesso a rua e sinto que sou
Júlia Roberts, eu sou uma linda mulher usando lingerie preta escondida
debaixo da roupa discreta. Passo por entre as mesas na calçada e todos os
homens me olham estupefatos com
minha beleza sem maquiagem. Entro num táxi. Eu já ia pedir pro táxi me
levar para Holliwood quando uma buzina doeu no meu ouvido como toque de
recolher.
Olhou para trás assustada e viu o marido acenando. "Aonde você vai?", ele gritou. "Você se esqueceu que eu vinha te buscar?" Desceu do táxi, entrou no carro e ele perguntou se precisava passar na padaria para levar pão e leite para o lanche, disse que o moço da televisão pegou o aparelho estragado e ficou de devolver no final da semana e que as crianças ligaram da praia dizendo que os tios insistiam para elas ficarem até o final do mês.