LINGUAGEM, GÊNERO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA[1]
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG/CNPq)
The book is on the table, table, table
The dog is on the table, table, table
The cat is on the table, table, table
The chicken is on the table, table, table
And everybody is on the table, table, table
Table, table, table, table!!!
And everybody is on the table, table, table!!
(Banda Mastruz com Leite)
Questões teóricas
A concepção de linguagem materializada em gêneros tem sido ignorada ao longo da história do ensino de línguas. O conceito de língua predominante no contexto escolar ainda é, na maioria de nossas escolas, o de estrutura lingüística, congelada em sua dimensão sintática e sem inserção em contextos significativos.
Almeida Filho (2005), ao fazer um diagnóstico das condições de ensino de língua estrangeira (LE) nas escolas paulistas, lista problemas que se repetem por todo o país. São eles:
Ensino desvinculado da realidade do aluno. Ensino fortemente gramatical, formalista, com pouca ênfase no uso da língua em atividades relevantes. Ambiente pobre de sala de aula com poucos materiais e pouco aproveitamento dos materiais existentes. (p.70)
Essa descrição pode ser, sem medo de errar, transferida para outros estados do Brasil. Quando falamos de ausência de contextos significativos de uso da língua, estamos falando, essencialmente, da ausência de gêneros textuais e, consequentemente, da ausência de práticas sociais da linguagem nas sala de aula.
Defino gêneros como “sistemas discursivos complexos, socialmente construídos pela linguagem, com padrões de organização facilmente identificáveis, dentro de um continuum de oralidade e escrita, e configurados pelo contexto sócio-histórico que engendra as atividades comunicativas” (Paiva, 2004).
A explicitação do conceito de gênero e sua associação ao ensino de línguas é algo muito novo, mas alguns autores que contribuíram com pressupostos teóricos para a sustentação da abordagem comunicativa já sinalizavam para sua importância sem, contudo nomeá-lo.
Os filósofos da linguagem, Austin (1955)[2] e Searle (1969) demonstraram que quando usamos a língua estamos, ao mesmo tempo, executando ações. O conceito de força ilocucionária proposta por Austin guarda muita identidade com o conceito de gênero. Segundo Austin, “o ato ilocucionário é um ato convencional: um ato feito em conformidade com uma convenção”[3] (1975, p.105). Ele cita como exemplos de força ilocucional ações, tais como, “informar, ordenar, avisar, comprometer-se, etc., enunciados que têm certa força (convencional)” (p. 109).
Quando Austin constrói a noção de força ilocucionária, ele está, mesmo de forma implícita, lidando com a noção de gênero, pois um enunciado só produz sentido quando um gênero é acionado. Vejamos um exemplo de um mesmo enunciado com forças ilocucionárias diferentes.
No primeiro quadrinho, a função acionada é a queixa ou pedido de providência, no segundo a confissão, e, no terceiro, a solicitação de uma música. O mesmo enunciado executou atos diferentes, ao ser utilizado em contextos diferentes. MacCarthy (1993) chama nossa atenção para os pares adjacentes[4] e a dependência mútua desse tipo de enunciado. Diz ele:
(...) só podemos ter certeza da função de um enunciado que inicia um par adjacente quando temos a contextualização com a resposta no segundo par e vice-versa (assim, hello, em inglês, pode ser um cumprimento, um pedido para que alguém se identifique ao telefone, ou uma expressão de surpresa: ‘Hello! What’s is this here?’) (p. 120)
No quadrinho, percebemos que a identidade do interlocutor também é responsável por determinar o significado de um ato de fala, o que confirma que o gênero é socialmente construído pela linguagem e configurado pelo contexto sócio-histórico em que é engendrado.
Searle (1969, p.16), na mesma direção de Austin, propõe a hipótese de que:
falar uma língua é executar atos de fala, tais como, fazer afirmações, dar ordens, fazer perguntas, fazer promessas, e assim por diante, e de forma mais abstrata, atos, tais como, referir e prever; e, de forma secundária, que esses atos são, geralmente, possíveis e executáveis em função de algumas regras de uso de elementos lingüísticos.
Searle afirma, ainda, que “o significado é mais do que a mera intenção, mas é, pelo menos, algumas vezes, uma questão de convenção” (p.45).
As palavras chave “ação” e “convenção” nos remetem, diretamente, às reflexões sobre gênero, tal como propõe Miller (1984). Segundo a autora, “uma definição sólida de gênero não deve estar centrada na substância ou na forma do discurso, mas na ação que se costuma efetuar” (p. 51) e cita Frye[5] para lembrar que “o estudo dos gêneros deve basear-se no estudo das convenções” (p.52).
Se o gênero tem a ver com a ação e com as convenções, parece-me razoável afirmar que a força ilocucionária só se realiza através dos gêneros e que estes sejam a unidade a ser levada para a sala de aula de língua estrangeira de forma a desenvolver a competência comunicativa, conceito desenvolvido pelo sociolingüista Dell Hymes (1972), em reação ao conceito de competência de Chomsky.
Dell Hymes expandiu o conceito de competência, até então limitado à gramática, ao incluir componentes sócio-culturais e psicológicos que interferem no uso da linguagem. De forma implícita, Hymes incluía a noção de gênero ao advogar a necessidade de uma competência comunicativa, pois considerava a capacidade de utilizar as regras gramaticais (sintaxe) insuficiente para a produção dos enunciados. Para ele, a competência comunicativa deveria incluir, além do conhecimento lingüístico, a habilidade de uso da línguagem. Hymes propunha então quatro parâmetros, em forma de perguntas, para testar se um enunciado é comunicativo.
1. se (e em que extensão) algo é formalmente possível?
2. se (e em que extensão) algo é viável em virtude dos meios de implementação disponíveis.
3. se (e em que extensão) algo é é apropriado (adequado, feliz, bem sucedido) em relação ao contexto no qual é usado e avaliado.
4. se (e em que extensão) algo é de fato feito, realmente executado, e o que isso acarreta. (Hymes, 1972, p. 281)
A primeira pergunta está associada à sintaxe, a segunda à psicolingüística, à terceira à sociolingüística; e a última à pragmática, ou seja, ao uso. O que nos garante se algo é realmente usado é o nosso conhecimento das práticas sociais da linguagem e são essas práticas que deveriam ocupar o espaço escolar. Como afirma Bentes (2005, p. 121), “o domínio dos diferentes gêneros pode auxiliar o aluno a ser o legítimo “dono” de sua fala, ou seja, pode levar o aluno a ocupar, com maior consciência, os diferentes lugares a partir dos quais pode falar e escrever”.
O conceito de competência comunicativa foi retomado por Canale e Swain (1980) que propõem os seguintes componentes: gramatical, sociolingüística, e estratégica. Os pressupostos para essa proposta incluem, dentre outros, a comunicação baseada nas interações interpessoais e socioculturais, as ações humanas e o conhecimento de mundo. Mais tarde, Canale (1983) acrescenta mais uma categoria – a competência discursiva, que só se realiza através dos diferentes gêneros, tendo como parâmetros a coesão e a coerência.
Finalmente, não podemos omitir Halliday (1973) e seu conceito de língua. Segundo ele, “uma criança sabe o que é língua porque ela sabe o que a língua faz” (p.10). e “a compreensão do que é uma língua vem de sua experiência com a língua em situações de uso” (p.17). Assim, Hymes propõe uma base funcional para a linguagem, entendida como funções sociais. Ele enfatiza que a língua serve a determinados propósitos que ele chama de funções da linguagem, onde reside o significado. Essas funções vão se sofisticando ao longo da vida e se realizam nos gêneros, apesar de Hymes não utilizar esse termo.
Todas essas idéias foram impactantes no ensino de línguas e deram suporte à abordagem comunicativa que propõe que o foco saia das estruturas gramaticais e recaia sobre o uso, sobre a comunicação.
Almeida Filho(1993, p.15) faz as seguintes considerações sobre o que é aprender uma língua, na perspectiva comunicativa:
Aprender uma língua nessa perspectiva é aprender a significar nessa nova língua e isso implica entrar em relações com outros numa busca de experiências profundas, válidas, pessoalmente relevantes, capacitadoras de novas compreensões e mobilizadora para ações subseqüentes.
Percebe-se, pois, que o objetivo deixa de ser aprender sobre a língua e passa a ser aprender a usar a língua e isso só pode ser feito através de gêneros. Essa abordagem exige um bom domínio de língua e atenção às necessidades dos alunos.
Tarone and Yule (1989) comentam o fosso que pode existir entre os currículos e as necessidades dos alunos. Dizem eles que:
estabelecer o que os alunos necessitam saber envolve determinar quais são os objetivos dos aprendizes ao aprender a língua (por exemplo, conseguir um emprego como vendedor, ou conseguir uma bacharelado em engenharia), e então observar os tipos de comportamentos comunicativos nos quais os falantes nativos da língua alvo (ou, em contexto de língua estrangeira, falantes não-nativos fluentes) se engajam para conseguir seus objetivos (como, por exemplo, entender as perguntas dos fregueses e respondê-las de forma apropriada, ou entender palestras e tomar notas). (p. 33)
O que Tarone and Yule propõem poderia ser traduzido como a necessidade de se ter um ensino baseado em gêneros que os aprendizes precisam usar para atingir seus objetivos. A implementação de currículos dessa natureza implica não apenas um bom domínio do idioma, mas conhecimento dos gêneros envolvidos.
O que acontece na prática
Passados tantos anos, as práticas pedagógicas no ensino básico e, até mesmo em alguns cursos de Letras, continuam divorciadas do conceito de linguagem como gêneros. Algumas manifestações literárias já captaram, com fino humor, esse divórcio entre o ensino da língua e seu uso. Essas críticas continuam válidas até hoje. Reproduzo trechos de duas crônicas. A primeira, de Rubem Braga, intitulada Aula de inglês, foi publicada em 1945.
— Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar
levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para
ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema.
Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.
(...)
Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse
convincentemente:
— No, it's not!
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia
deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:
— Is it a book?
(...)
— Is it a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que
poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que
haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de
dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e
muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
— No, it's not!
(...)
— Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um
ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto
que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um
ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de
comprimento.
As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias
curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de
bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado
(uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já
riscado. Respondi:
— Yes!
(...)
— Very well! Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com
que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e
muito orgulho.
Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo
firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive
mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa
conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu
tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
-- It's not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois
deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser
versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Maio, 1945
Pela data da crônica e pelo tipo de aula, é possível deduzir que o cronista está criticando uma aula do Método Direto. A esse respeito comento em Paiva (2005, p. 129)
“Rubem Braga consegue, com seu humor, demonstrar como o Método Direto, que se propunha a desenvolver as habilidades orais, se equivocava ao fazer com que o aluno praticasse frases com foco exclusivo na forma e que não encontravam nenhuma correspondência na vida real.”
O humor atinge o seu ápice quando Braga hipotetiza uma interação com o embaixador, iniciada pelo enunciado – It's not an ash-tray! – totalmente improvável, fugindo à convenções do gênero diálogo e sem nenhuma força ilocucionária.
Alguns gêneros são, freqüentemente, utilizados como pretextos para o ensino de gramática, ignorando-se suas condições de produção e suas finalidades. Um bom exemplo é a utilização inadequada dos diálogos pelos livros didáticos. A predominância do conceito de língua como um conjunto de estruturas sintáticas isoladas de seus contextos de uso tem como conseqüência um ensino que sonega dos aprendizes práticas sociais da linguagem autênticas e significativas.
No próximo excerto, Luiz Veríssimo (1982, p. 29-31) critica o ensino artificial em uma simulação bem-humorada de uma interação conversacional entre aprendizes de francês e de inglês.
(...) Vamos a primeira lição.
Chama-se Mr Brown e os mistérios de Paris.
Cena: Um bar sombrio. Homens mal-encarados, prostitutas, etc.. Pela porta entra um homem vestindo um impermeável. Ele olha para todos os lados antes de dirigir-se para o balcão. Fala ao Barman com o canto da boca.
Homem – Je suis Monsieur Dupont.
Barman – Bonjour, Monsieur Dupont. Comment allez vous?
Monsieur Dupont – Bien, merci.
(Puxa o Barman para si pela frente da camisa e pergunta): Ou est la plume de ma tante?
Barman (confidencialmente) – La plume de votre tante est sur la table. Música de suspense. Monsieur Dupont solta a camisa do Barman e olha em volta ameaçadoramente. Depois aproxima-se de uma mesa onde está sentado um casal. As pessoas afastam-se para dar passagem a Monsieur Dupont.
Monsieur Dupont – Qu’est que c’est ça? Est-ce que ça est une table?
O casal se entreolha. O homem ergue-se da mesa, encara o homem do impermeável e diz:
Homem – Oui, ça est um table.
Mulher – Ou oui, c’est une table.
Monsieur Dupont não dá atenção à mulher. Agarra o outro pelas lapelas.
Homem – Est-ce que la plume de ma tante est sur la table?
Homem – Non, la plume de votre tante n’est pás sur la table.
Monsieur Dupont (sacudindo o outro) – Ou est la plume de ma tante?
Mulher (tirando uma caneta de dentro do deconte) – La plume de la tante de Monsieur Dupont est ici.
Os dois homens se viram para ela, intrigados. Há um misto de surpresa e dor no rosto do segundo homem. Neste momento, entra no bar um casal com uma criança. Homem que acabou de entrar (para o Barman) – My name is Mr. Brown.
Barman – Hello, mr. Brown. How are you?
Mr. Brown – Fine, thank you. This is Mrs Brown.
Barman – Hello, Mrs Brown.
Mrs. Brown (piscando um olho sugestivamente para o Barman) – Hello! Mr. Brown (mostrando o garoto) – And this is our little boy, John.
Barman – Hello, John.
John – Where is the pencil?
Barman (indeciso) – The pencil is on the table…
O garoto dirige-se para a mesa. O murmúrio percorre o bar. Uma mulher leva a mão ao pescoço.
John – Is this a table?
Homen (irritado) – Oui, ça c’est une table.
John (apontando para a caneta da mulher) – Is this a pencil?
Monsieur Dupont (afastando o garoto violentamente)
- Non, ca c’est la plume de ma tante.
Mr Brown corre para socorrer o filho. Mrs Brown, indiferente, pede um gim fizz.
Mr. Brown (desafiando Monsieur Dupont) – This is a pencil.
Monsieur Dupont – Ça n’est pas un crayon. C’est la plume de ma tante.
Mr. Brown – This is a pencil!
Os dois começam a brigar. O conflito alastra-se. Todos Brigam no bar. Entra a apresentadora.
Apresentadora – Esta foi a nossa primeira lição. Não percam a aula de amanhã, quando ficaremos sabendo tudo sobre o possessivo em inglês e a contração em francês no palpitante Apóstrofe e Paixão...
Nesses “diálogos”, encontramos frases utilizadas em alguns manuais didáticos de ensino de francês e de inglês que não se preocupavam em inseri-las em situações de comunicação coerentes, que se assemelhassem à vida real, ou seja, inseridas em gêneros. Lembrando uma das perguntas de Dell Hymes – se (e em que extensão) algo é de fato feito, realmente executado, e o que isso acarreta – fica a pergunta: qual é a probabilidade de ocorrência de frases como “La plume de votre tante est sur la table” ou “This is a pencil!”? Em que gêneros essas frases apareceriam? Que comunidades discursivas utilizariam tais enunciados e com que força ilocucionária?
Raro é o material didático que não utiliza “diálogos”, mais raro, ainda, é o material que leva em consideração que o diálogo é um gênero oral que se constrói localmente na interação. A esse respeito, Chiaretti e Paiva (1998), após analisarem alguns livros didáticos brasileiros, afirmam que:
(...)o diálogo didático ainda não está desempenhando de forma adequada o papel de modelo conversacional, pois carrega pouca informação a respeito das condições de produção e interpretação da fala. Numa conversa espontânea, o que se diz é uma criação em parceria. Os participantes se interrompem, fazem digressões e nem todos os tópicos são aceitos ou bem desenvolvidos. A fala é, portanto, marcada por iniciativa e competição. Os diálogos didáticos, que são criados artificialmente por um ou mais autores, passam por revisões e têm objetivos que atendem a um planejamento prévio de conteúdo programático. Os textos assim gerados terão, portanto, uma "sintaxe didática" - frases completas, super estruturação dos turnos, resultando em uma artificialidade provocada, sobretudo, pela simetria dos enunciados. (p. 32-33)
O trabalho de Chiaretti e Paiva (1998) sobre os diálogos didáticos corrobora a afirmação de Almeida Filho (2005, p.83) de que “materiais deste tipo e as experiências que eles suscitam em sala de aula não poderiam promover o pleno e bem-sucedido engajamento dos processos internos do aprendiz.”.
O que fazem os aprendizes
Para superar as ausências de uma comunidade de prática discursiva e da produção de sentido, os aprendizes, muitas vezes, recorrem à comunicação de massa (filme, música, revistas). Essa constatação nos leva a hipotetizar que, intuitivamente, o aprendiz acredita que são os gêneros e não as estruturas isoladas que lhes auxiliam no processo de aquisição de uma língua estrangeira.
Exemplos desse fenômeno também aparecem na literatura brasileira e nas narrativas do projeto AMFALE, disponíveis na web [http://www.veramenezes.com/narrativas.htm].
Em Senhorita Simpson, conto de Sérgio Sant’Anna (1989, p.112-113), encontramos um bom exemplo:
– Attention please, Mr Paiva and Mr. Silva, Mr. Jones has a dog. Rex, Mr. Jone’s dog….
– Miss Simpson, por que a gente na usa de vez em quando uns comics? – interrompeu o Gontijo, numa frase que ele deveria ter decorado em inglês e eu não consigo reproduzir aqui na mesma língua. – O visual pode ajudar – foi mais ou menos isso o que ele acrescentou.
– O que são comics? Perguntou Santos, fingindo inocência. – Comédias?
– História em quadrinhos – esclareceu orgulhosamente o Gontijo.
– Boa idéia, ou melhor, good idea – disse o Paiva. – A gente podia passar também uns videocassetes. Com legenda ou sem legenda, o que vocês acham melhor? – ele perguntou só para a gente, em português.
Não sei por que, vindo da boca dele, aquilo soava obsceno. A senhorita Simpson começou a ficar vermelha e o Matoso, demonstrando insensibilidade, ainda acrescentou:
– Eu preferia uns textos teatrais. Esses do livrinho são muito cretinos.
Esses personagens e os narradores do projeto AMFALE criticam o uso de frases artificiais e demonstram ter a intuição de que a linguagem como gênero seria o melhor caminho para a aquisição da língua. Vejamos alguns excertos do corpus de narrativas do projeto AMFALE de aprendizes de português como língua estrangeira, aprendizes brasileiros e japoneses de inglês.
A) Aprendizes de português como língua estrangeira
(1) Eu me chamo Rick, vim da China. Tenho 30 anos. Eu já estudo português há quase meio ano. Eu estudo português na UFMG, intermediário 1 e intermediário 2, os cursos, e já fiz o curso básico. E eu tenho amigos brasileiros; eles sempre falam português comigo. E também eu leio livros em português, eu vejo novela, eu vejo filme, eu vejo televisão. Eu também leio jornais. Só isso.
(2) E eu assistia muito, muita televisão, né, jornal, músicas. A Argentina escuta muita música brasileira, então, inconscientemente eu acho que ... Caetano Veloso, Gal Costa, a gente escuta muito. Se bem não entende, mas, pelo menos, né, já escuta o idioma, já conhece.
B) Aprendizes de inglês no Brasil
(3) Aprendíamos o verbo to be, presente, passado e futuro dos verbos, interrogativa e negativa. Não via muito propósito naquelas aulas, mas o que eu podia fazer?
(4) O problema nem eram os professores nem o método de ensino, o problema era que eu simplesmente não entendia o funcionamento da língua. Com o uso da música, dos filmes e da televisão, o inglês passou a existir direitinho para mim, a funcionar como língua, a fazer sentido...
(5) Não me recordo do livro adotado, mas, havia nele, textos sobre os Beatles, a Rainha Elizabeth e outros temas interessantes.
(6) Eu gostava de me corresponder com pessoas fora do Brasil porque era uma forma de poder exercitar o ingles pra escrever, também assistia filmes, escrevia textos, lia revistas. Era uma forma de estar aprendendo. Levava as revistas pra sala, quando eu não sabia um termo pedia explicação pra professora. Era muito bom.
Reações semelhantes são encontradas no corpus de Tim Murphey[6], em relatos de aprendizes japoneses, aprendendo inglês.
C) Aprendizes de inglês no Japão
(7) when I was a junior high and high school student, I earnestly read long articles and studied grammar and learned vocabulary by heart. But now it is natural for me to touch real English almost every day. For example, I watch English-conversation programs on television, listen to Western Music and sometimes keep a diary in English. In addition, I want to see movies (of course, Western movies) as many as possible. In this spring break I will try to keep on doing all the above-mentioned. Thus, my attitude toward English has changed from memorizing English to enjoying English. I will not spend any day without English. By the way, I have never been to foreign countries.
(8) I have improved my ways of language learning in a good sense. At first, I learned to solve my problems without a dictionary. Also I had many opportunities to touch English, that is, I came to think in English. But I wish to increase those opportunities from now on. Second, in daily life, I listened to English. For example, I listened to English music and watched movies. I think that was the way of language learning with fun.
Conclusão
Acredito ter apresentado evidências tanto teóricas quanto empíricas para reforçar minha convicção de que é o uso de gêneros no ensino de línguas estrangeiras o caminho adequado para a aquisição. Ainda precisamos de muitos estudos e pesquisas para sustentar a implementação desse tipo de abordagem, apesar de já termos alguns bons trabalhos na área (ver PALTRIDGE, 2001; CRISTÓVÃO, 2001 e 2002; LOUSADA, 2002; SCHNEUWLYe DOLZ, 2004; e CRISTÓVÃO e NASCIMENTO, 2005)
McCarthy (1993: 119) sugere que:
até que sejam reunidos grandes corpora de fala natural (o que não é uma tarefa pequena em função dos problemas com a gravação desses dados), temos que confiar em nossa intuição de professores de línguas para decidir que formas de fala são as mais centrais e úteis para serem investigadas e praticadas com os grupos de aprendizes.
No entanto, principalmente, no que diz respeito à interação social, o que observamos nas narrativas de muitos de nossos aprendizes, são experiências de aprendizagem onde ocorre o total descarte dos gêneros orais com a preservação de suas características, em favor de pseudo-textos a serviço da prática de estruturas sintáticas.
No caso dos diálogos, não advogo que devemos ensinar as características da interação oral e transformar nossos alunos em analistas da conversa. Como pontua MacCarthy (1993, p. 128),
não é uma questão de dizer aos aprendizes que os falantes tomam turnos; eles sabem isso naturalmente em suas próprias línguas. O problema consiste em assegurar que as atividades irão gerar tipos de turnos naturais que ocorrem na língua alvo e não inibir tomadas de turno típicas.
Uma possibilidade para o ensino do diálogo seria o uso de atividades do tipo cued dialogue, ou diálogo orientado, onde os aprendizes recebem as indicações das funções que devem utilizar (ex. convidar, recusar polidamente, aceitar com pouco entusiasmo), mas sem imposição de uma forma previamente selecionada. Outra possibilidade, seria a edição dos diálogos artificiais, incluindo características do gênero: aberturas, fechamentos, marcadores, hesitações, sobreposições, e seqüências inseridas, sem perder de vista as condições de produção.
Espero que no futuro, quando alguém escutar a banda Mastruz com leite cantar “The book is on the table, table, table” não se recorde, imediatamente, de suas experiências como aprendiz de inglês.
Referências Bibliográficas
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BENTES, A. Gênero e ensino: algumas reflexões sobre a produção de materiais didáticos para a educação de jovens e adultos. In: KARWOSLI, A; GAYDECZKA, B; BRITO, K. Gêneros textuais: reflexões e ensino. Palmas e União da Vitória, PR: Kaygangue, 2005. p.95-122.
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SEARLE, J. Speech acts: an essay in the philosophy of language. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.
TARONE, E.; YULE, G. Focus on the language learner. Oxford: Oxford University press, 1989.
VERÍSSIMO, L.F. Outras do analista de Bagé. 13. ed. Porto Alegre: L&PM, 1982. p. 29-31.
[1] Este texto é uma versão ampliada do trabalho “A linguagem como gênero e a aprendizagem de língua inglesa” apresentado no II SIGET (Seminário Internacional de Estudos de Gêneros Textuais) em agosto de 2005, em Santa Maria.
[2] Neste texto, estou usando a segunda edição de 1975.
[3] Esta e as demais traduções dos originais são de minha responsabilidade.
[4] Par adjacente é uma seqüência de dois enunciados produzidos por dois falantes diferentes. O segundo enunciado é sempre uma resposta ao primeiro. (Richards, Platt; Weber, 1987)
[5] FRYE, N. Anatomy of Criticism. Princeton: Princeton University Press, 1957.
[6] Tim Murphey é um dos colaboradores do projeto AMFALE e as narrativas por ele coletadas podem ser lidas em [http://www.veramenezes.com/nar_tim.htm]