BOLAS E VERSOS

Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva 

 

Belo Horizonte, 24 de setembro de 1990.

 

                             Bem-aventurados os que reprimem

                             No homem o poder de ação

                             Aventurados são todos que usam

                             A palavra liberdade

                             Como sinônimo de repressão

                                   Ronald Claver

 

Caro diretor/poeta,

 

                                        "A mestra com olhar de mestra" tomou a bola dos meninos. A bol/alegria que os pequenos trocavam pela merenda estava lá , poeta, aliás, estavam lá  três bolas, trancadas no armá rio, tramando contra a instituição chamada escola. Aquelas bolas subversivas vieram perturbar a ordem, poeta. Elas não rolam pelas linhas retas dos trilhos da escola. Elas fazem curva, passam por baixo das carteiras, desviam a atenção dos alunos que precisam aprender a ler e escrever para ler nas linhas retas da história oficial, que precisam aprender a contar coelhos e galinhas pelos pés, quando é tão mais fácil contá-los pelas cabeças! Mas eles precisam aprender a aprender, aprender que não é proibido proibir e assim entrar nos trilhos e  serem homens de respeito neste Brasil varonil. Mas a professora disse que só devolvia a bola se o pai fosse lá , e lá  foi a mãe, poeta. E a professora, educadamente, recebeu a mãe e explicou , ou melhor, tentou explicar o comportamento da turma. Mas a mãe, poeta, não quis escutar e desagradou a professora. A escola pisou na bola, poeta. A professora tem pressa em fazer com que os pequenos cresçam, mas a mãe, poeta, ela é anarquista, ela quer o filho analfabeto, porém feliz. A professora se assustou com a heresia e disse que o menino é muito inteligente. Pode ser, mas o controle motor do menino não é tão bom assim não, e ele prefere a bola à terapia. O menino é repetente. A outra professora disse que ele sabia tudo, mas deixou as provas em branco e a mãe não deixou que ele fizesse a recuperação porque ela não tem pressa. A mãe tem pós-graduação em morte precoce - a pressa de um ônibus levou-lhe o filho de dois anos e ela hoje não tem pressa, poeta. Se o filho não tivesse morrido, estaria hoje em cima de uma cama sem poder jogar bola. E o irmão que veio depois acabou de descobrir a bola, poeta. Mas a escola não gosta da bola e o menino gosta tanto da bola que parou de merendar para poder ficar mais tempo com a bola. Talvez a bola seja incontrolável, como incontroláveis são os poetas que fazem versos com esta vida transversa. Tu és tão perigoso quanto a bola, poeta. Platão queria te expulsar da república porque marcavas o adversário e fazias gols com os dribles dos teus versos. Durante a repressão, os poetas deram olé na censura e enfraqueceram o autoritarismo. É por isso que ele também gosta dos teus versos, diretor/poeta. Ele descobriu que o diretor também faz versos e como ele chuta a bola. E não adianta tomar-te o papel, farás versos na areia, no pensamento... Não adianta tomar as bolas, as crianças continuarão a chutar latas ou bolas de papel. Poetas e crianças têm uma dose de criatividade que a autoridade da escola não poder  nunca controlar.  O que fazer com as bolas, poeta?   As bolas quebram os vidros e os espelhos, atrapalham as aulas e é tão importante aprender que as palavras são oxítonas, paroxítonas, proparoxítonas, dissílabas, trissílabas, polissílabas, antônimas, sinônimas, e que os conjuntos são vazios, unitários....

Ah! poeta, dentro do armário tinha um conjunto de três elementos, três maus elementos, três pertubadores da ordem. Estavam lá, poeta, desde quinta-feira. Passaram o fim de semana sem rolar por linhas sinuosas, sem driblar as rotas previamente estabelecidas. Ficaram lá  as três, torturadas pela escuridão do armário, como faziam com nossa geração na época da repressão, lembra-te poeta? Trancaram alguns dos nossos nos armários e muitos não mais voltaram para suas casas. Os que voltaram não voltaram da mesma forma que entraram nos armários da ditadura. Algumas mães loucas, como esta que te fala, exigiram seus filhos de volta e hoje, poeta, eu exigi a bola de volta, esquecendo-me que a professora tem pressa, que precisa cumprir o programa e que tinha toda a razão ao ter ciúmes da bola. O meu filho não sentiu falta da bola não. Ele não foi à aula na sexta, nem foi na segunda. Foi para a fazenda com o pai tocar um berrante e ainda por cima levou um colega com ele. Estou com medo que meu filho perca pontos por participação _ descobri que ele não fez o exercício em que se pedia para escrever a diferença entre vida urbana e vida rural. E o pior ‚ que se eu, que sou filha da cidade grande e que aprendi o que é vida rural nos livros, não ensinar para ele, é bem capaz que ele não saiba responder. Afinal, ele fica na casa da Marieta, mulher do Tião, peão que toma conta da fazenda. E lá ele vive a vida do campo: vê o Tião tirar leite e fazer queijo. Anda à cavalo com o filho deles, põe as galinhas para correr, vê o gado ser vacinado, e, à noite, vê as estrelas porque lá  não tem televisão não. Mas se eu não cuidar, é bem capaz que ele tome bomba outra vez, pois ele só sabe o que é viver, não sabe nada de teoria. Não sei o que farei quando ele estiver mais adiantado na escola e tiver que contar os bichos pelos pés. Sabe aquele problema, poeta? No galinheiro havia x patas de coelho e y pés de galinha. Quantas galinhas e quantos coelhos habitavam o galinheiro? Tenho certeza de que ele não vai saber fazer essas contas. Vou ter que ensiná-lo, desde já , a olhar para as patas dos bichos. Ele está  acostumado a olhar as estrelas e contar animais pelas cabeças. Mas voltemos à bola, essa malfadada que impede que as crianças merendem ou aprendam que existem drogas silenciosas nas esquina e nas escolas. Será  que aquelas duas bolas vão continuar no armário? A orientadora me disse que as crianças foram avisadas que a bola estava proibida na escola. Mas eu não sabia, poeta, senão não teria deixado que ele levasse a bola. Bem que o pai perguntou várias vezes, quando ele saía com a bola debaixo do braço, se não era proibido levar bola para a escola. Na época do pai, escola nunca foi lugar de prazer. No colégio interno, a diretora tomou-lhe todas as bolinhas de gude. Desconfio que um certo presidente, quando era criança, teve sua bola confiscada e compulsoriamente presa no armário. Naquele momento lhe ensinaram a não ter respeito pela propriedade alheia. O menino cresceu, virou presidente e, mirando-se, talvez no exemplo da escola autoritária, confiscou o dinheiro que o povo brasileiro, driblando a fome, depositou nas cadernetas de poupança. Quem sabe essa escola não está  preparando meu filho para ser presidente desta Re-pública? Só que meu filho não quer a bola só para ele, ele a quer para passar de pé em pé, de colega para colega, distribuindo-a irmamente como deveria estar sendo distribuída a renda deste país verde e amarelo de tanta fome. O menino quer a bola para dividir com os colegas e ao mesmo tempo somar no prazer coletivo. Como vês, poeta, essa esfera, de vidro ou de pano , de plástico ou de couro, há  muito perturba a ordem escolar. Bola na escola só há  lugar para uma. Sabe qual é? É uma azul anil que fica dentro de um losango amarelo ouro, que fica dentro de um retângulo verde amazônico. Dentro dessa bola há  várias estrelas e uma frase, ORDEM E PROGRESSO. E dizem que essa frase positivista nem é de inspiração nacional.

                Bola prá  frente, poeta. Liberte as bolas! Compre muitas bolas e as espalhe pelo pátio na hora do recreio, e, se possível, aumente o tempo do intervalo que transgride a ordem em busca do prazer. Escola rima com bola. E se suas professoras continuarem com medo das bolas, encharque-as com teus versos, poeta. Teus versos nunca rimaram bolas com armários.

 

          Um abração de poeta para poeta,

 

 Mãe do menino, que ama/va a  escola  porque lá  havia bolas e versos