PAIVA, V.L.M.O.Muito além das palavras: a força do contexto na produção de sentido em Being There, In: MELLO, R. Análise do Discurso e Literatura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.227-37

 

MUITO ALÉM DAS PALAVRAS: a força do contexto na produção de sentido em Being There

 

Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG)

 

 

                    cover

 

 

 

 

Being There, romance de Jerzy Kosinski, foi publicado em 1971 e ficou imortalizado nas telas do cinema quando, em 1979, Peter Sellers deu vida ao personagem principal, Chance, o jardineiro, na comédia que manteve o título original em inglês, mas que em português foi traduzido como Muito além do Jardim. A adaptação para o cinema foi do próprio Kosinski e lhe valeu dois prêmios de melhor roteiro, um da Writers Guild of América e outro da British Academy of Film and Television Arts.

O romance foi traduzido para o português como o Vidiota, uma feliz criação lexical de Hindemburgo Dobal para representar o personagem principal, um jardineiro analfabeto, que lida com o mundo real como se estivesse assistindo televisão.

O personagem recebeu o nome Chance porque nascera por acaso. É um órfão com problemas mentais, adotado por um velho rico e solitário, e criado isolado do mundo externo à casa. Sua única fonte de educação foi a televisão, além de um jardineiro que lhe ensinou o ofício.

A vida de Chance se resume ao jardim e aos vários aparelhos de TV, presentes do velho, espalhados pela casa. Após a morte do dono da mansão, Chance é obrigado a sair da casa. Na rua, ele vê um aparelho de televisão em uma vitrine, se distrai e é atropelado pela limusine de uma mulher rica, casada com um industrial influente, Rand, que se encontra gravemente enfermo. Ela o leva para sua casa para ser examinado pelo médico que cuida do marido. O jardineiro é confundido com um homem de negócios, pois está vestido com boas roupas, herdadas do velho que o adotara. Chance fica hospedado na casa dos magnatas, dando início à construção de sua nova identidade pelos sentidos que são atribuídos às suas falas sobre jardinagem.

 

As metáforas

Aculturado pela televisão, Chance é descrito como se fosse, ele mesmo, uma planta de seu próprio jardim. Vejamos um mesmo exemplo no original e na tradução.

By changing the channel he could change himself. He could go through phases, as garden plants went through phases, but he could change as rapidly as he wished by twisting the dial backward and forward. (…) He sank into the screen. Like sunlight and fresh air and mild rain, the world from outside the garden entered Chance, and Chance, like a TV image, floated into the world, buoyed up by a force he did not see and could not name. (p.5)

 

Mudando de canal, ele podia mudar a si mesmo. Podia passar por fases, como as plantas, mas podia mudar com a rapidez que desejava, girando o botão para diante e para trás. (...) Desceu para a tela. Como a luz do sol, o ar fresco e a chuva fraca, o mundo exterior ao jardim entrou em Chance, como uma imagem de televisão, flutuava no mundo, sustentado por uma força que não via e que não podia dar nome.

 

O jardim e a televisão constituem o seu mundo. Com a televisão, Chance aprende a interagir com as pessoas à sua volta, vivendo como um vegetal, sem condições de raciocinar. Sua identidade está, definitivamente, associada ao jardim, como se vê na fala do personagem: “I was here before there were big bushes and before sprinkles in the garden. Before television.” (p.13)/ “Sou mais antigo que os arbustos maiores, do que os regadores automáticos do jardim. Mais do que a televisão.” (p.23)

As metáforas em torno do jardim e das plantas permeiam todo o romance, pois os personagens constroem os sentidos metafóricos a partir dos enunciados literais de Chance sobre o jardim. Tolentino (1990) analisou as metáforas no filme a partir da teoria desenvolvida por Lakoff e Johnson (1980) que advogam que nosso sistema conceptual é, fundamentalmente, metafórico. A autora encontrou exemplos de algumas metáforas, tais como idéias são plantas e o homem de negócios é um jardineiro. Vejamos como a autora analisa um dos excertos do filme em uma cena que Chance encontra o presidente dos Estados Unidos na casa de Rand, seu anfitrião.

Durante o encontro , o Presidente pergunta a Chance:

- Acha que podemos crescer com medidas temporárias?

 

Chance responde a partir do estímulo da palavra CRESCER.

 

- Enquanto as raízes não forem cortadas...tudo está bem...e vai continuar bem...num jardim.

 

Segundo a Tolentino (1990) as metáforas conceituais que podemos tirar de todo esse diálogo são o solo é igual ao pais/terra; as perspectivas são estações/temperatura; as indústrias são árvores/plantas; lucros são frutos; problemas são galhos.

 

A mesma cena no romance é a seguinte:

 

Being There

    The men began a long conversation. Chance understood almost nothing of what they were saying, even though they often looked in his direction, as if to invite participation. Chance thought that they purposely spoke in another language for reasons of secrecy, when suddenly the president addressed him: “And you, Mr. Gardiner? What do you think about the bad season on The Street?”

    Chance shrank. He felt that the roots of his thoughts had been suddenly yanked out of their wet earth and thrust, tangled, into the unfriendly air. He stared at the carpet. Finally, he spoke: “In a garden,” he said, “growth has its season. There are spring and summer, but there are also fall and winter. And then spring and summer again. As long as the roots are not severed, all is well and all will be well.” He raised his eyes. Rand was looking at him, nodding. The President seemed quite pleased.

    “I must admit, Mr. Gardiner,” the President Said, “that was what you’ve just Said is one of the most refreshing and optimist statements I’ve heard in a very, very long time.” He rose and stood erect, with his back to the fireplace. “Many of us forget that nature and society are one! Yes, though we have tried to cut ourselves off from nature, we are still part of it. Like nature, our economic system remains, in the long run, stable and rational, and that´s why we must not fear to be at its mercy.” (p.44-45)

 

O vidiota

Os dois começaram uma longa conversa. Chance quase não entendia nada do que diziam, embora olhassem freqüentemente em sua direção, como convidando-o a participar. Chance pensava que, por razões de segurança, falavam de propósito noutra língua, quando o presidente se dirigiu a ele:

      E o que diz, Sr. Gardiner? O que pensa deste tempo de negócios ruins nos meios financeiros.

    Chance se encolheu. Sentiu que as raízes de seus pensamentos tinham sido arrancadas de repente de sua terra úmida e lançadas, em confusão, no ar inimigo. Olhou para o tapete. Finalmente falou: - Num jardim, – disse – há o tempo de cultivar. Há a primavera e o verão outra vez. Enquanto as raízes não forem arrancadas tudo está bem e terminará bem. – Levantou os olhos. Rand olhava para ele, balançando a cabeça em aprovação. O presidente parecia estar gostando.

    – Confesso, Sr. Gardiner, – disse o presidente, –que o que acaba de me dizer é uma das declarações mais encorajadoras e otimistas que tenho ouvido nos últimos tempos. – Levantou-se, ficou de pé, de costas para a lareira. – A maioria de nós esquece que a natureza e a sociedade são a mesma cousa. Sim, tentamos nos separar da natureza, mas ainda somos parte dela. Como a natureza, o nosso sistema econômico, a longo prazo, continua estável e racional e é por isso que não devemos ter medo de ficar à sua mercê. (p.54-55)

Chance é mostrado como um vegetal, pista que o autor nos dá no segundo parágrafo da página inicial, quando mostra semelhanças e diferenças entre as plantas e as pessoas. “As plantas não podem agir intencionalmente: não podem deixar de crescer, e o seu crescimento não tem sentido, pois as plantas não podem raciocinar ou sonhar”.

Chance parece se diferenciar dos homens normais e se aproximar mais das plantas, pois é uma criança que cresceu, mas não raciocina ou sonha. Quando instado a participar da discussão “Sentiu que as raízes de seus pensamentos tinham sido arrancadas de repente de sua terra úmida e lançadas, em confusão, no ar inimigo”. No entanto, um item lexical, season (estação) na versão em inglês e “tempo” na tradução, lhe deu o gancho necessário para desenvolver sua fala sobre o jardim.

Segundo Ogden e Richards (1989, p. 15),

[N]ormalmente, quando ouvimos alguma coisa sendo dita, vamos rapidamente para uma conclusão imediata, isto é, que o falante está se referindo ao que nós estaríamos nos referindo se estivéssemos nós mesmos emitindo aquele enunciado.[1]

No exemplo em questão, o presidente, acreditando estar interagindo com um homem de negócios, opta por atribuir um sentido metafórico ao enunciado.

            Cada interlocutor de Chance atribui aos seus enunciados o que lhe interessa ou o que precisa ouvir no momento. Assim, o presidente dos Estados Unidos vê, na fala sobre o jardim, o otimismo que precisa para superar os problemas econômicos do país; a personagem feminina, a carente Eve, preenche a elipse do objeto em “I like to watch” (Eu gosto de ver) como um convite á masturbação; o personagem gay, como um pedido de um voyeur em busca da performance de uma dupla de gays, e nós, os leitores, somos conduzidos pelo autor a interpretar como “Eu gosto de ver televisão”.

 

Atos de fala

Segundo Searle (1988), o significado está relacionado ao uso e à intenção do falante. Assim compreender um enunciado seria sinônimo de compreender a intenção do falante. No romance de Kosinski, temos uma situação interessante, pois podemos perceber a intenção do enunciador, autor do romance, pois nos é dado o papel privilegiado de acessar os vários significados que são produzidos pelo mesmo enunciado: um associado à intenção do falante – falar sobre o cultivo das plantas – e  outro produzido pelo ouvinte que é enganado por sinais do contexto. Um terceiro sentido é associado ao efeito que o narrador quer causar em nós – o humor que critica a televisão e a política.

            Poderíamos, pois, contestar Searle e afirmar que o significado não está, essencialmente, na intenção do falante, mas na semiose que o ouvinte leitor produz a partir dos vários signos do contexto, ou seja, o sentido é muito mais dependente do contexto do que da intenção.

Os dois níveis de linguagem – um metafórico e outro literal – constroem duas identidades paralelas para o mesmo personagem e dão ao leitor o poder de atribuir vários significados ao mesmo enunciado, culminando com a construção de uma  sátira à política e à televisão.

Austin (1975, p.139) afirma:

No momento em que percebemos que o que temos de estudar não é a frase, mas a emissão do enunciado em uma situação de fala, dificilmente haveria a possibilidade de ignorarmos que falar é executar um ato.

 

No caso das falas de Chance a força ilocucionária é pressuposta pelo interlocutor, pois não existe uma intenção do enunciador personagem que preencha as expectativas de seus interlocutores. Segundo diz Searle (1988, p. 25), “ao argumentar eu posso persuadir ou convencer alguém, ao avisar eu posso alarmar ou gerar medo”.O jardineiro enuncia constatações sobre o mundo físico e sobre o jardim e os homens de negócio e o presidente as interpretam como conselhos econômicos.

Se todo ato de fala ou escrita tem uma intenção, ou seja, uma força ilocucionária, no caso em pauta, a intenção pode ser rastreada no enunciador. Ao gerar o diálogo entre o jardineiro e altas esferas do poder – políticos e mídia – Kosinski tem a intenção de executar um ato de fala perlocucionário, ou seja produzir um efeito no leitor. Austin (1975, p. 107) adverte que todo ato perlocucionário inclui algumas conseqüências. No romance, as conseqüências são o humor e a crítica aos políticos e à mídia.

O engano identitário gerado pelas produções de sentido equivocadas nos faz rir e, ao mesmo tempo, refletir sobre a mídia e as identidades que a comunicação de massa ajuda a construir ou destruir, nos enganando e nos manipulando. A TV em Being There transforma um retardado mental em uma celebridade nacional, um homem politicamente influente pelas soluções simples que enuncia ao falar dos cuidados de um jardim.

 

A construção do sentido segundo a semiotica peirciana

 

Peirce (1974) analisa a experiência humana através de três categorias sígnicas fundamentais da consciência humana que ele denomina de primeiridade, secundidade e terceiridade.

A primeiridade “é aquilo que é sem referência a qualquer outra coisa dentro dele, ou fora dele, independentemente de toda força e de toda razão” (PEIRCE, 1997, p.24). É o signo como algo em sim mesmo, independente, sem qualquer relação e não é alvo de reflexões. Esses signos não sofrem qualquer tipo de semiose, são apenas o que são, meras possibilidades de significação.

A percepção como reação da experiência imediata constitui a secundidade. Segundo Peirce (1997, p.8) “secundidade é o modo de ser daquilo que é tal como é, com respeito a um segundo, mas independente de qualquer terceiro”. Os signos, assim vistos, passam a ter um valor referencial em vista da relação que é estabelecida entre o signo e seu objeto.

A terceiridade estabelece uma relação triádica, pois temos uma terceira categoria que vai interpretar a segunda (secundidade), enquanto atualização da primeira (primeiridade). Peirce (1977, p. 27) define a terceiridade como “mediação, ou modificação da primeiridade e da secundidade pela terceiridade, tomada a parte da secundidade e da primeiridade”.

Ao longo dos textos de Peirce, várias definições de signo são apresentadas e foram assim sintetizadas por Paiva (1991, p. 58).

Um signo, ou representamen, é algo que em conexão com semelhança, contigüidade ou causalidade com uma segunda coisa, seu objeto, cria na mente de alguém um terceiro elemento, ou seja, uma idéia, um interpretante.

 

O signo é visto, pois como um processo, como semiose, um processo gerador de signos. Como explica Paiva (1991, p. 59), a semiose é

uma cadeia mental processada por um signo, cujo efeito envolve um objeto que leva a um signo, que leva a um interpretante, que por sua vez vai produzir outro signo, e assim ad infinitum. Um signo será sempre interpretado por outro signo, sendo esse último o interpretante do primeiro.

 

No caso de Chance, a primeiridade se constitui nas possibilidades de significação de suas falas sobre o jardim e a jardinagem que vão sendo atualizadas de acordo com a experiência imediata de cada um. Para os personagens interlocutores de Chance, o sentido vem via terceiridade, pois suas falas são metaforicamente interpretadas como pérolas de sabedoria. Para o leitor, estabelece-se uma relação dupla, a de secundidade, pois o leitor faz a conexão entre o signo e seus referentes no mundo da jardinagem e a de terceiridade, quando o leitor, reconhecendo a legitimidade da semiose realizada pelos personagens em torno de Chance, que são iludidos pelo contexto, interpreta o evento comunicativo de forma crítica. Enquanto os personagens atribuem sentido metafórico aos enunciados de Chance, o leitor de posse de todos os dados do contexto, também elabora novas semioses, rindo das situações criadas e refletindo criticamente sobre a política e sobre a televisão.

A produção de sentido muito além das palavras se justifica pela identidade de cada interlocutor, e pela identidade que é atribuída a Chance. Como lembra Peirce (1977, p. 269), “sempre que pensamos, temos presente na consciência algum sentimento, alguma imagem, concepção ou outra representação que serve como signo”. Ele acrescenta, “quando pensamos, nós mesmos, tal como somos naquele momento, surgimos como um signo”. Isso explica porque leitor e personagem constroem sentidos diferentes, pois são eles mesmos signos diferentes.

A teoria peirciana joga por terra o valor da intenção tão fortemente presente em Austin e Searle. Segundo Sheriff (1989, p.111), Peirce concordaria que não existe texto independentemente da mente humana e das expectativas dos intérpretes. A intenção não estaria só no enunciador, mas também no interpretante. O mesmo autor assevera que “intenção, significado, compreensão descrevem nossa experiência como usuários de signos”.

 

Kosinsky como analista conversacional

 

Aprender a se comunicar implica não apenas saber a língua, mas também como gerenciar a interação. Ser comunicativamente competente implica entre outras habilidades, tais como, saber tomar o turno, manter a atenção do outro, ou ainda, superar a ausência de conhecimentos para interagir em determinadas situações.

Kosinky, tanto no romance como, de forma aprimorada, no roteiro, tenta nos convencer que qualquer analfabeto pode aprender a usar estratégias de comunicação ao observar o que acontece pela televisão.

No roteiro[2], Kosinsky inclui duas cenas que não existem no romance. Na primeira, Chance observa o presidente dos Estados Unidos na TV, apertando a mão de seus convidados e o imita.

CLOSE SHOTS on television reveal that the President uses a two-handed handshake when meeting his guests.  Chance grips one hand with the other, the scene on TV seeming to have 'sunk into' his mind. 
(Tomadas em close na televisão revelam que o presidente usa as duas mãos para cumprimentar seus convidados. Chance agarra uma mão com a outra, a cena da TV parece ter penetrado em sua mente)
 
Em outras duas cenas, Chance repete o cumprimento afetuoso de apertar a mão do interlocutor com as duas mãos. Primeiro, com o advogado que o expulsa de casa – “Chance remains seated, takes Franklin's hand warmly in both of his like the President did on TV. (Chance continua sentado, aperta a mão de Franklin com as duas mãos como fez o presidente na TV)” - depois, com o próprio presidente, deixando-o desconcertado.

 

RAND
Oh, Mr. President, I'd like you to meet my dear friend, Mr.Chauncey Gardiner.
 
Chance and the President exchange a two-handed handshake.The President reacts.
 
(Oh, Sr. presidente, gostaria que conhecesse meu amigo. Sr. Chauncey Gardiner. Chance e o presidente trocam um aperto de mão com as duas mãos. O presidente reage.)
 

O aprendizado com a TV nem sempre gera efeitos adequados. Chance não sabe distinguir os graus de formalidade. Na interação em que há hierarquia entre os participantes, espera-se que apenas o de maior status quebre as convencionalidades. A intimidade no cumprimento deixou o presidente desconcertado.

 No texto do romance, na mesma cena dos cumprimentos, Kosinsky trabalha com a função do olhar na comunicação.

 

Being There

Remembering that during his TV press conferences, the president always looked straight at the viewers, Chance stared directly into the President’s eyes. (p.

O Vidiota

Lembrando que nas reuniões com a imprensa na televisão o Presidente sempre olhava diretamente para os telespectadores, Chance fixou diretamente os seus olhos.(p.53)

 

O cumprimentar ao presidente com as duas mãos no filme, ou o olhar fixo para ele, no romance, colabora para a construção da identidade do personagem pelos interlocutores como a de um homem importante e seguro.

               Chance demonstra ser um bom comunicador não só por olhar para o interlocutor como também por estar sempre balançando a cabeça em sinal de concordância ou emitindo outros sinais fáticos como “I see” (eu ententendo), “Oh, fine’ (ótimo), por exemplo.

 Um bom exemplo é sua interação com o embaixador russo. O embaixador fala em russo e Chance ergue as sobrancelhas e depois ri. O embaixador fica eufórico, acreditando que Chance sabe russo.

 

Conclusão

 

Kosinski explica a produção de sentido quando diz “Estamos seguros quando os outros se dirigem a nós e nos vêem. Tudo o que fazemos é então interpretado pelos outros do mesmo modo que interpretamos o que eles fazem” (p.39). Essa asserção do narrador encontra paralelo no conceito de interpretante de Peirce. O interpretante reúne as convenções do sistema de símbolos e todos os dados referentes ao objeto. Dessa forma, Chance se cerca do mundo do jardim para responder aos interlocutores a partir de signos(ex. tempo) que servem de gatilho para a produção de seus enunciados. Seus interlocutores, a partir dos índices contextuais, que contribuem para construir uma identidade falsa do interlocutor, acessam as metáforas – a economia é um jardim; o homem de negócios é um jardineiro, dentre outras – que vão gerar o sentido para as falas de Chance.

Como afirma Mari (2002, p. 50), “existem limites para que o sentido seja construído em qualquer texto, os quais são fornecidos pelas restrições que a língua, com seu vocabulário e sua sintaxe, impõem à interpretação”. Assim os significados que são atribuídos às falas de Chance, apesar de diferentes, encontram respaldo no uso da língua tanto em termos literais quanto metafóricos.

O romance de Kosinski comprova que o sentido é construído na dimensão local do discurso e varia conforme a identidade que o ouvinte projeta para o enunciador. Este último não tem controle sobre a “verdade” que os outros constroem a partir de seus enunciados, pois o sentido está muito além das palavras.

 

Referências Bibliográficas

 

AUSTIN, J.l. How to do things with words. 2nd edition. Cambridge: Harvard University Press, 1975.

KOSINSKI, J. Being there. Toronto: Bantam Books,1970.

KOSINSKI, J. O vidiota. Tradução de Hindemburgo Dobal. Rio de Janeiro: Artenova,1971.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by.Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

MARI, H. Percepções do sentido: entre restrições e estratégias contratuais. In: MACHADO et al. (Orgs.) Ensaios em análise do discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002. p.31-57.

OGDEN, C.K.; RICHARDS, I.A. The meaning of meaning. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1923-1989.

PAIVA, V.L.M.O. A língua inglesa enquanto signo na cultura brasileira. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFRJ, 1991. (Tese de Doutorado)

PEIRCE C. S. The collected papers of Charles Sanders Peirce. Vols. I-VI. In: Hartshorne C, Weiss P, eds. Cambridge: Harvard University Press; 1931-35, 1974.

_____________. Semiótica. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1977. (Coleção Estudos, v. 46)

SEARLE, J.R. Speech acts: an essay in the philosophy of language. Cambridge: Cambridge University Press, 1969-1988.

SHERIFF, J.K. The fate of meaning: Charles Peirce, structuralism, and literature. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1989.

TOLENTINO, M. V. F. Muito além das metáforas. In: PONTES, E. (Org.) A metáfoa. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.



 

[1] A tradução desta e todas as demais citações são de minha responsabilidade.

[2] O roteiro pode ser acessado em < http://www.geocities.com/Hollywood/8200/being.txt>

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